Utopias tradicionais para enfrentar as crises da modernidade

A 14ª edição da Encartes dedica a seção do Dossiê apresentar vários artigos que enfocam o interesse e a vocação da antropologia mexicana com o seguinte título: "La confección de la utopía comunitaria. Dúvidas, certezas e imaginários na construção do futuro".

Os comunitarismos indígenas não são apenas vestígios do passado e da tradição. Deles emanam modelos para enfrentar o mundo contemporâneo, oferecendo alternativas de organização social que proporcionam comunitarismos, modelos autossustentáveis diante da crise ambiental gerada pelo extrativismo capitalista, projetos revolucionários, bem como expressões artísticas e literárias de vanguarda. Como Mary Louis Pratt mencionou há algumas décadas,

A incapacidade do neoliberalismo de gerar pertencimento, coletividade e um senso crível de futuro produz, entre outras coisas, enormes crises de existência e significado que estão sendo vivenciadas pelos não-consumistas e consumistas do mundo de maneiras que a ideologia neoliberal não pode prever nem controlar. Por outro lado, de lugares aparentemente insignificantes ou marginais surgem os agentes inescrutáveis de um futuro cujos contornos não conhecemos (Pratt, 2007: 29).

Nesse sentido, abordar as utopias que estão sendo geradas pelas comunidades indígenas parece não apenas tentador, mas também muito relevante.

O Dossiê inclui um artigo de Eduardo Zárate, "Utopías comunitarias como apuestas del futuro entre los purhépechas", no qual ele descreve como as organizações indígenas se estruturam em torno de imaginários do futuro desejável ao reivindicar o reconhecimento de sua diferença étnica. Carlos Casas é o autor de "Nahua writers: community utopias and practices on possible futures in the Sierra de Zongolica, Mexico", um artigo no qual ele mostra como a criação literária na língua vernácula incentiva práticas criativas voltadas para a construção de projetos comunitários e utópicos. Javier Serrano faz sua contribuição com "El futuro en común. Las comunidades indígenas en las ciudades del bajo río Negro, Norpatagonia argentina", no qual explica que essas comunidades não têm um passado comum e carecem de território, embora se identifiquem como Mapuche e Mapuche-Tehuelche e obtenham coesão por meio da participação em projetos compartilhados para um futuro comum.

Rogelio Ruiz Díaz apresenta o artigo "Ejido El Porvenir in Valle de Guadalupe, Baja California. Experiências e memórias de uma comunidade agrícola". Esse ejido está localizado na área de fronteira entre o México e os Estados Unidos e precisa articular uma dupla realidade: a das práticas corporativas do Estado mexicano e as pressões do mercado. Delázkar Rizo Gutiérrez escreve "Composing and fragmenting community utopia. Vivir la autonomía entre sueños y decepciones" (Compor e fragmentar a utopia comunitária. Viver a autonomia entre sonhos e decepções), em que ele descreve o valor de fazer a milpa, recuperar tradições religiosas, realizar assembleias e comer em família como práticas do que ele chama de projeto de "utopização da vida tradicional".

Na seção Realidades sócio-culturais inclui três artigos sobre diferentes tópicos. A lista é encabeçada por "Learning to accompany Mexican amateur digital athletes. Elementos para pensar la presencia y construcción del campo mediado por tecnologías", de Iván Flores, que apresenta um novo tópico para a antropologia: etnografia digital sobre atletas digitais e sua atividade em videogames. A segunda seção é intitulada "Learning to see and feel the invisible: somatic pedagogy in alternative spiritual practices" (Aprendendo a ver e sentir o invisível: pedagogia somática em práticas espirituais alternativas), de Yael Dansac, que trata da importância de estudar as cerimônias espirituais neopagãs que ocorrem em um sítio arqueológico de megálitos antigos localizado em Carnac, na França, que se tornou um local de celebração das espiritualidades celtas contemporâneas. Sua metodologia se concentra nos corpos e em suas sensibilidades. Ele a chama de "pedagogias somáticas". Em terceiro lugar, publicamos o texto "Bailando para los santos en el tiempo de covid-19: respuestas al confinamiento de 2020 en el centro de México", com coautoria de David Robichaux, Jorge Martínez Galván e Manuel Moreno Carvallo, que analisam as festividades religiosas nas regiões de Teotihuacán e Texcoco como parte de um ato votivo - um pagamento de manda por um favor recebido - durante o confinamento causado pela pandemia de covid-19, que envolveu tornar essa tradição uma tradição vivida em plataformas digitais.

A seção de Encartes multimedia consiste no artigo "On insomnia in Zamora. O que não se fala, mas o que a noite permite que seja mostrado". Esse é um ensaio fotográfico da antropóloga Laura Roush, no qual ela registra as tímidas expressões de dor, pesar e medo durante suas caminhadas noturnas pela perigosa e insegura cidade de Zamora, Michoacán. Sua câmera revela os recursos simbólicos e rituais (como cruzes, altares dos mortos e cenotáfios) que, em meio à dor e ao medo, aparecem à noite. A câmera possibilitou o presente como uma troca de histórias das pessoas que perambulam pela cidade noturna em troca de retratos fotográficos da antropóloga em um ponto de encontro: uma barraca de comida de rua. Também publicamos o ensaio fotográfico de Pablo Uriel Mancilla Reyna, intitulado "Photographing a ritual process: an approach to the agency of the Xantolo masks in the Huasteca Potosina", cujas imagens mostram a ação das máscaras em um festival Nahua naquela região, que materializam simbolicamente os mortos durante sua passagem para o mundo dos vivos.

Na seção sobre Entrevistas Incluímos a conversa entre o antropólogo Arturo Gutiérrez e o artista Tony Kuhn, bem como a segunda parte da entrevista de Renée de la Torre com Claudio Lomnitz, na qual é abordada a face criativa e artística do trabalho antropológico.

A seção de Discrepancias foi planejado para comemorar o 100º aniversário da publicação do livro Ensaios sobre o presente do antropólogo francês Marcel Maus. Marcelo Camurça aceitou o convite para organizar um painel em forma de homenagem que visa refletir sobre a atualidade da teoria da dádiva de Mauss com dois especialistas que se apropriaram de seus conceitos com abordagens muito diferentes, mas muito atuais: Marcos Lanna e Renata de Castro Menezes.

Em Reseñas críticas No primeiro, Patricia Arias comenta o livro de Inés Vachez Palomar intitulado Arquitetura de remessas. A transformação de um vilarejo mexicanoAnna Braconnier comenta sobre o livro Acertando as contas: Guatemala, o fim e os fins da guerra e Karla Ballesteros analisa o livro coordenado por Antonio Zirión: Redescobrindo o arquivo audiovisual etnográfico.

Em nome da equipe editorial da Encartes Esperamos que esta edição seja do interesse de nossos gentis leitores.

Renée de la Torre
Editor de Encartes

Bibliografia

Pratt, Mary Louise (2007). "Globalisation, demodernisation and the return of the monsters" [Globalização, desmodernização e o retorno dos monstros], Revista História (156), pp. 13-29.