Perspectivismo: uma teoria do ponto de vista da alteridade?

  • Moderador Arturo Gutiérrez del Ángel
  •  *

Recepção: 14 de julho de 2023

Aceitação: 3 de agosto de 2023

Sem dúvida, o chamado movimento perspectivista na antropologia tem seus maiores expoentes em Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro, que propõem que esse olhar seja uma nova teoria e paradigma antropológico conhecido como "perspectivista". virada ontológica, multinaturalismo, ecologia simbólica, antropologia pós-estrutural. A abordagem principal é o questionamento do eu, de sua natureza, que cria uma divisão entre a natureza do ser humano e a do não humano, uma posição que é metodologicamente construtivista e política e moralmente relativista. Ambos os pesquisadores consideram que, ao contrário do que supõe a ciência ocidental, não existe uma forma única de cosmogonia ou pensamento unificado. Não é apenas o ser humano que pode ter um ponto de vista, mas os animais e outras formas ou seres não humanos também têm seus próprios pontos de vista, que seriam equivalentes. Portanto, é importante conhecer esses pontos de vista sobre a realidade para integrá-los em diferentes perspectivas.

Para alguns, o perspectivismo é uma revolução no pensamento antropológico, enquanto para outros ele não é uma teoria, mas está mais próximo de uma ideologia forjada ao trazer para a arena de discussão paradigmas antigos, desenterrados e ultrapassados que há muito foram superados. Mais do que uma teoria, ela implicaria um flerte com a metafísica, que gerou uma espécie de ortodoxia acadêmica com seguidores acólitos que repetem uma fórmula sem uma base teórica sólida.

Você considera o perspectivismo uma teoria ou uma continuidade de outras teorias?

Meu conhecimento sobre o assunto se limita principalmente à minha participação no seminário "Cosmology and ontology. Un enfoque antropológico", ministrado por Philippe Descola (Collège de France) no Instituto de Investigaciones Antropológicas da Universidad Nacional Autónoma de México nos dias 28 e 30 de setembro e 2 de outubro de 2009. Também tive a oportunidade de ler alguns artigos enquadrados nessa corrente e orientei algumas teses de pós-graduação que adotam a orientação mencionada. Em minha opinião, o perspectivismo antropológico é uma teoria por si só, com uma sólida base empírica na pesquisa etnográfica. Como qualquer outra teoria antropológica, ela contém elementos de continuidade com teorias anteriores e elementos de ruptura. O componente mais notável e novo é a adoção da noção gnoseológica de perspectiva. Em minha opinião, esse conceito pode ser rastreado até as ideias de Friedrich Nietzsche sobre a distinção entre, por um lado, o pensamento, a moralidade e as ciências ocidentais, que buscam obter um conhecimento objetivo do mundo e da vida, e, por outro lado, o modo subjetivo de conhecimento, que o filósofo alemão considerava mais genuíno e revelador da vontade humana individual, algo que normalmente chamamos de subjetividade. Essas ideias podem ser encontradas em A genealogia da moralidade (1887) e em alguns parágrafos de seu Manuscritos póstumos (1888). Citarei algumas frases que ilustram a noção nietzschiana de perspectiva, resumida da seguinte forma: não há fatos, há apenas interpretações:

"Todo conhecimento é uma perspectiva, e há tantas perspectivas quanto o número de seres humanos no mundo" (Manuscritos póstumos, 1887).

"A moralidade é uma perspectiva, não uma verdade absoluta. Cada época e cultura tem sua própria moralidade, e nenhuma é universalmente válida" (Genealogia da moralidade, 1887).

"Os seres humanos não têm acesso a uma verdade objetiva, mas só podem conhecer o mundo por meio de suas próprias perspectivas subjetivas" (Manuscritos póstumos, 1886).

"A verdade não é algo que possa ser alcançado por meio de uma única perspectiva, mas deve ser vista de vários ângulos para ser totalmente compreendida" (Manuscritos póstumos, 1885).

"A perspectiva é o que mantém a vida em movimento. A mesma coisa vista de ângulos diferentes se torna um mundo completamente diferente" (Manuscritos póstumos, 1886).

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Os estudos perspectivistas se destacam por sua heterogeneidade e - vale a redundância - pela diversidade de perspectivas e interpretações do que é ou pode ser uma abordagem perspectivista da análise antropológica. Começarei com a trajetória de seu principal representante, que é ao mesmo tempo o fundador do perspectivismo na antropologia: o antropólogo brasileiro Viveiros de Castro. Ele é um especialista nos Araweté, aos quais dedicou seus primeiros trabalhos etnográficos. Eles são um povo de caçadores e agricultores da floresta amazônica do norte do Brasil e fazem parte das sociedades ameríndias da família linguística tupi-guarani, que inclui mais de 50 línguas diferentes faladas em grupos em vários países da América do Sul, como Argentina, Bolívia, Colômbia, Guiana Francesa, Peru e Venezuela. Deve-se observar que o povo Araweté é pouco numeroso: na época em que Viveiros de Castro os "etnografou", ele realizou censos populacionais que indicam que, entre 1981 e 1992, eles somavam entre 130 e 168 pessoas; no último censo realizado pela funai Em 2023, sua demografia foi estimada em cerca de 293 pessoas.

Em seus estudos sobre o araweté, Viveiros de Castro observou que, a partir de uma abordagem relacional entre sujeito e objeto, toda percepção do mundo implica a existência de um ponto de vista. Essa relação entre o sujeito e o mundo pode ser ilustrada com o seguinte exemplo: o que aparece para um humano como um recipiente de sangue aparece como um pote de cerveja para um jaguar, o que também significa que quem percebe um pote de cerveja assume uma perspectiva humana, enquanto quem vê um recipiente de sangue assume a perspectiva de um jaguar (Viveiros de Castro, 1992). O modelo amazônico de "multinaturalismo" cunhado por Viveiros de Castro implica a troca paradigmática amazônica, a de perspectivas, na qual uma troca de substâncias está quase sempre implícita. Para se distanciar do relativismo e da noção de representação que ele implica, Viveiros de Castro argumenta que se percebe a partir do corpo.

Embora seja comum que os antropólogos estudem pequenos grupos para construir nossas interpretações teóricas mais gerais, vale a pena lembrar esses aspectos do trabalho do inventor do perspectivismo, pelo menos para deixar a porta aberta para reflexões e questionamentos sobre o alcance universal que os mitos, os rituais e a cosmologia desses povos podem ter. Como planeja Viveiros de Castro, uma metafísica perspectivista caracteriza não apenas os povos ameríndios da Amazônia, mas se estende a todo o continente e muito além, de tal forma que o perspectivismo eleva uma das várias formas de pensar o mundo encontradas em uma pequena aldeia amazônica a uma teoria antropológica de alcance universal.

Diante de uma proposta tão grandiosa, podemos nos perguntar como esse antropólogo brasileiro chegou a formular tais generalizações e de que tipo de formação intelectual e correntes de pensamento essa abordagem universalista pode ter vindo. A esse respeito, vale lembrar que o ensino da antropologia no Brasil - como atesta o próprio Viveiros de Castro - está claramente inscrito - assim como no México, aliás - no culturalismo norte-americano e no legado de Franz Boas como fundador da antropologia norte-americana como disciplina. à part entière. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que lecionou antropologia no Brasil durante a década de 1930, era herdeiro da corrente culturalista norte-americana e boasiana. Para Viveiros de Castro, Lévi-Strauss conseguiu estabelecer pontes de pensamento entre a antropologia sociológica francesa (Émile Durkheim, Marcel Mauss...) e a antropologia cultural norte-americana. Dele, resgata a ideia de pensamento selvagem e o estudo das cosmologias ameríndias por meio dos mitos, a busca de lógicas de pensamento alheias às nossas, a análise dos sistemas de classificação indígenas (taxonomias), com especial atenção à linguagem e à variedade de suas modalidades expressivas de acordo com os contextos.

O perspectivismo na antropologia é herdeiro tanto do estruturalismo lévistraussiano quanto do pós-estruturalismo na filosofia. Por um lado, o perspectivismo implica que a relação entre um sujeito e um objeto é mais relevante do que a definição de cada termo; aqui vemos uma clara herança do método de análise estruturalista Lévistraussiano. A obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, intitulada O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia (1985 [1972]), também serve de inspiração para Viveiros de Castro, em particular para criar a fórmula do anti-narcisista (Viveiros de Castro, 2010:11-81), como uma crítica à antropologia clássica com seu ponto de vista etnocêntrico e egocêntrico.

Considero, então, que, sem desmerecer seu caráter original e como muitas outras teorias antropológicas, o perspectivismo é o resultado de uma síntese de várias teorias anteriores, das quais mencionei apenas algumas.

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Como o discurso biomédico em torno de corpos e identidades se articula com outros discursos e projetos morais?

Considero que a maior contribuição do perspectivismo na antropologia é ter renovado, nos últimos anos, dois motivos fundamentais inerentes à visão etnológica da realidade humana: primeiro, a unidade inseparável e complexa do mundo humano com os ecossistemas naturais dos quais ele faz parte. Essa visão ecológica das sociedades humanas tem suas raízes no pensamento de Jean Jaques Rousseau, que, como enfatizou Lévi-Strauss, argumentou que, por meio de La PiedadOu seja, por meio da identificação com todos os seres da criação, o pensamento humano é capaz de alcançar uma compreensão mais ampla e solidária do mundo e da vida. Uma segunda contribuição é constituída pela firme posição não-objetivista sobre as relações entre as várias culturas, formadas pelas sociedades humanas, e as diferentes "naturezas" não-humanas que essas culturas conceberam.

Quanto à crítica da posição perspectivista-ontologista, meu ponto de vista se baseia em uma série de dúvidas, e não em objeções teóricas ou metodológicas. Enumerarei a seguir alguns aspectos da questão que não consigo entender: a noção de perspectiva, sem dúvida, condensa a visão subjetiva-objetiva que a antropologia cultural adotou desde seus primórdios. As noções de cultura, diversidade cultural, relatividade cultural ou visão de mundo fazem parte de nosso discurso como antropólogos há muito tempo. A ética da neutralidade antropológica invariavelmente nos leva a respeitar o conhecimento, as convicções e as crenças dos "outros" culturais. Portanto, surgem as seguintes perguntas: com que base podemos substituir esses conceitos pela ideia de "metafísica ou ontologias nativas"? Em que sentido as disciplinas gregas clássicas do ser e das entidades podem nos oferecer uma melhor compreensão dos fenômenos cognitivos e emocionais do que o estudo de sistemas classificatórios ou da chamada etnopsicologia? Onde está a novidade efetiva dessa abordagem? Presumo que a intenção dos autores perspectivistas não era simplesmente substituir o termo latino "cultura" por outros de origem grega, como metafísica e ontologia. Como não me aprofundei no assunto, essa pergunta permanece, para mim, sem resposta.

Uma segunda pergunta diz respeito à posição dos antropólogos perspectivistas-ontologistas sobre o papel do antropólogo em relação ao pensamento científico. No texto introdutório desse questionário, é mencionado o seguinte:

A principal abordagem é o questionamento do eu, de sua natureza; eles criam uma divisão entre a natureza do ser humano e a do não humano. Uma posição que é construtivista em termos metodológicos e relativista em termos políticos e morais. Eles consideram que, ao contrário do que a ciência ocidental supõe, não existe uma forma única de cosmogonia ou pensamento unificado.

Isso significa que todos os grupos humanos desenvolveram alguma forma de reflexão sobre noções tão abstratas e idiossincráticas como as da antiga tradição grega, baseadas principalmente na presença, nas línguas indo-europeias, da cópula do verbo Ser [είμαι, "eimai"]? Não há uma nuance etnocêntrica na ideia de que todos os grupos humanos desenvolveram uma investigação sobre "ser", "entidade" e todas as suas derivações? Em meu humilde entendimento, somente a tradição ocidental desenvolveu um pensamento sobre o ser. Os modos de categorização do mundo natural e humano que operam por meio do "pensar na natureza" são testemunhos dessa diversidade de maneiras de conceber o mundo. Se aceitarmos a realidade de inúmeras ontologias, não estaríamos retornando da ciência humana contemporânea duramente conquistada para o estado anterior de um conhecimento nocional, principalmente verbalista e logocêntrico, como o da metafísica?

Por fim, o texto introdutório desse questionário menciona o seguinte: "Não é apenas o ser humano que pode ter um ponto de vista, mas os animais e outras formas ou seres não humanos têm seus próprios pontos de vista, que seriam equivalentes". A dúvida, nesse ponto, é metodológica: de que forma um etnógrafo poderia adquirir o ponto de vista dos animais e de outros seres não humanos? Como ele poderia chegar a saber que essas perspectivas são equivalentes? Sem negar os avanços de disciplinas como o estudo da "comunicação animal" e da biossemiótica, incluindo a perspectiva da ecologia profunda, acho difícil conceber como a lacuna aparentemente intransponível entre o universo simbólico das linguagens humanas (verbal, gestual etc.) e a alteridade radical do Real, que nós, humanos, processamos, simbólica e imaginativamente, quando construímos diversas e inumeráveis "naturezas", povoando-as com signos, poderia ser superada.

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Nos últimos vinte anos, o perspectivismo tem sido discutido e questionado por meio de várias abordagens críticas, abrindo assim espaços para reflexão, debate e reformulação. Para responder à pergunta, tentarei sintetizar as principais críticas que têm sido feitas ao perspectivismo, destacando tanto os aspectos que considero questionáveis quanto as principais contribuições dessa corrente do pensamento antropológico. Acho importante ressaltar que, embora concorde com várias dessas críticas, considero que um aspecto positivo desses debates é que eles têm estimulado reflexões interessantes e inovadoras não só para a antropologia, mas também para outras ciências, do ponto de vista teórico, metodológico e até ético.

Retomando a trajetória de seu fundador, a partir de seus primeiros trabalhos etnográficos, Viveiros de Castro procurou ampliar seus horizontes e passou a desenvolver estudos comparativos em nível regional. Essa iniciativa, sem dúvida, revela em filigrana o método de análise transformacional de Lévi-Strauss. O próximo nível de análise consiste na busca de universais do pensamento humano para alcançar um nível de reflexão antropológica, seguindo a hierarquia estabelecida por Lévi-Strauss entre etnografia, etnologia e antropologia. Esse esquema epistemológico, que se caracteriza pelo estabelecimento de uma hierarquia entre diferentes níveis de conhecimento antropológico, merece ser questionado por ser muito mecânico e discriminatório. No entanto, esse esquema hierárquico ainda está em vigor nos estudos de muitos colegas, e é por isso que, ao que me parece, não foi suficientemente criticado para provocar uma ruptura epistemológica completa.

De fato, um problema crucial com esse esquema é que ele reconhece um traço do século XIX da grande antropólogos de poltrona que muitas vezes levou a generalizações baseadas em um caso etnográfico específico. Basta mencionar os exemplos do xamã, do mana e do tabu, entre outros conceitos indígenas específicos que foram aplicados a sociedades de todas as latitudes e temporalidades. A esse respeito, concordo com as reflexões críticas desenvolvidas por Pierre Déléage em seu livro L'Autre-mental. Figuras do antropólogo na escrita de ficção científica (2020), que reconhece afinidades entre o perspectivismo de Viveiros de Castro e o pensamento de Lucien Lévy-Bruhl sobre a "alma primitiva".

Seguindo essa ordem de ideias, Viveiros de Castro desenvolveu em seus primeiros trabalhos etnográficos reflexões comparativas que abrangeram mais sociedades da região, com temas como xamanismo, canibalismo, parentesco e sistemas rituais amazônicos. Ao ampliar seus horizontes, a postura teórica e metodológica de Viveiros de Castro também dialoga com os trabalhos de Marilyn Strathern (1988) e Roy Wagner (1981 [1975]) sobre algumas sociedades da Oceania, que buscam mostrar que todo indivíduo - ou melhor, sujeito - está imerso em uma série de redes relacionais que determinam sua posição e identidade no mundo. De acordo com essa abordagem, é por meio dessas redes relacionais que o sujeito pode ser definido. Nesse sentido, não é apenas a relação que se estabelece entre o sujeito e o mundo que é decisiva, mas também as relações que os diferentes sujeitos mantêm entre si. A partir daí, buscamos desenvolver um método etnográfico dialógico ou "simétrico" (Latour, 1991) e focamos nosso interesse no exame dos conceitos utilizados por esse outro, que é nosso interlocutor em um estudo antropológico.

O que estamos falando então nas obras perspectivistas é a concepção do outro em sua natureza profunda, o que Viveiros de Castro e outros autores contemporâneos chamam de "ontologia". Esse conceito filosófico foi formulado há muito tempo por Aristóteles, que o definiu como o estudo do ser como tal (grego: ontologia). para- ser, particípio presente do verbo "ser"). Desde então, a aplicação de noções filosóficas, como a ontologia, a modos de ser e de pensar sobre a relação entre os seres humanos e o mundo que são diferentes e alheios a essas noções, foi herdada de uma longa tradição ocidental que não deixou de redefini-las e reformulá-las ao longo dos séculos. Viveiros de Castro adaptou essa noção deturpada à antropologia.

Curiosamente, quando os trabalhos sobre o perspectivismo e o multinaturalismo amazônico se tornaram conhecidos no México, o que os antropólogos mexicanos interessados nessa corrente (Saúl Millán, Johannes Neurath, entre outros) mais resgataram foi esse conceito de ontologia (Hernández Dávila, "The concept of ontology"). et al. 2018: 71-196), que, em minha opinião, é a mais problemática por vários motivos. Um deles é que existem realidades etnográficas que escapam a esse esquema de pensamento, o que é atestado por numerosos estudos, tanto no México quanto no mundo todo .... Outro se deve a um problema de lógica ou coerência simples em termos de seu discurso crítico sobre a antropologia clássica: se o que se busca é entender a perspectiva do outro para abranger as múltiplas formas de viver e conceber o mundo, por que usar como critério de referência uma concepção filosófica clássica da cultura ocidental cuja definição metafísica do eu como uma entidade em sua essência dificilmente é maleável quando confrontada com outras formas de pensar sobre o mundo? De fato, vale a pena perguntar se as dicotomias implícitas nos estudos de perspectivismo e ontologias, como sujeito/objeto ou humano/não humano, são válidas para as cosmologias que estamos estudando.

Há uma abundância de trabalhos antropológicos, tanto em sociedades ameríndias no México quanto em outros povos da América e em várias latitudes, bem como as abordagens de Alfred Gell (2016 [1998]) sobre a arte como agência, nas quais foi demonstrado que um objeto pode se tornar um sujeito social em determinados contextos, questionando assim a dicotomia entre sujeito e objeto. No caso de muitas sociedades que foram incluídas na área mesoamericana (não entrarei nesse debate aqui), vários estudos de antropólogos mexicanos (entre outros, os de Jacques Galinier, Danièle Dehouve, Gutiérrez e muitos outros) concluíram que estamos diante de um sistema em que não apenas a distinção entre cultura e natureza não é relevante, mas também não é a distinção entre humanos e não humanos, dadas as concepções antropomorfizadas da natureza e das entidades deificadas.

E, no entanto, em certa antropologia mexicana, o termo "ontologia" passou a substituir o conceito de "cosmovisão" em discursos e ensaios, e a ser usado praticamente como sinônimo de outro termo que era comumente usado na antropologia mexicana, influenciado pelo trabalho de Alfredo López-Austin, Johanna Broda e outros (2001: 47-65), focado na busca do "núcleo duro" do pensamento mesoamericano.Foi assim que se criou um efeito de moda no México há cerca de 20 anos, inspirado em temas que já haviam sido formulados e discutidos em outros lugares (principalmente no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa) desde a década de 1990. Essa resposta da antropologia mexicana, também na tradição culturalista, ecoa as discussões que vêm ocorrendo desde 2008 sobre se o conceito de ontologia não deve ser entendido "como apenas outra palavra para cultura" (Carrithers et al., 2010: 152-200).

De fato, parece que, apesar de descrever as relações interespécies e interculturais em toda a sua fluidez e dinâmica, o conceito de ontologia parece ser um retorno a uma visão essencialista e estática dos seres, que pode ser vista como um atavismo da tradição culturalista. Descola, em seu livro Além da natureza e da cultura (2012 [2005]), argumenta que há quatro ontologias no mundo: animismo, totemismo, analogismo e naturalismo, nas quais todas as sociedades do planeta estão distribuídas. Parece-me que classificar todas as sociedades do mundo em quatro categorias amplas denota uma ambição excessiva que beira a especulação. Especulações universalistas e generalizantes que haviam sido questionadas por Boas e Lévi-Strauss em suas críticas aos evolucionistas que, vale lembrar, formularam as primeiras teorias sobre animismo e totemismo, nomes de duas das ontologias estabelecidas por Descola. Diante das críticas que foram feitas a esse esquema totalizante, Descola admitiu mais recentemente que, em certos casos e contextos específicos, várias ontologias poderiam ser combinadas entre si. No entanto, ao fazermos nosso trabalho como antropólogos, continuamos a encontrar sujeitos e coisas no mundo - "existentes", diria Latour (2012) - e outras cosmologias que escapam ou vão além dessas construções teórico-metodológicas baseadas em observações feitas principalmente em sociedades amazônicas e oceânicas.

É claro que tanto Viveiros de Castro quanto Descola e outros representantes do perspectivismo na antropologia têm respondido às críticas de seus colegas às suas propostas iniciais, dialogando e encontrando novas bases para discussões frutíferas (Viveiros de Castro, 2014: 161-181; Descola e Ingold, 2014). Como resultado desses intercâmbios críticos em torno do perspectivismo e do multinaturalismo, foram desenvolvidos debates e reflexões sobre novas questões, como multiespécies, multiversos, o antropoceno ou a cosmopolítica, ultrapassando assim os limites da disciplina antropológica e colocando-a em diálogo com outras áreas do conhecimento. Também foram desenvolvidas e ampliadas questões em torno da distinção entre humano e não humano, reconhecendo a existência de seres híbridos que não se enquadram em nenhuma dessas categorias (Latour, 1991; Houdart e Olivier, 2011). Em relação ao exposto acima, fenômenos contemporâneos como "não humanos tecnológicos", transhumanismo ou tecnologias de inteligência artificial também estão sendo refletidos para repensar os limites do humano e do antropocentrismo, a partir de diferentes disciplinas. A partir das abordagens de Viveiros de Castro, Descola e Latour, pode-se dizer que surgiu uma infinidade de novas propostas antropológicas e interdisciplinares que questionam nossa condição humana contemporânea. Surgiram novos paradigmas de pensamento sobre o mundo ao nosso redor que transformaram profundamente a antropologia e outras ciências e até mesmo os movimentos culturais, políticos e sociais na última década.

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Como essa tendência influenciou seu trabalho?

Apesar de sua relevância atual, essa corrente não influencia meu trabalho porque minha pesquisa faz parte de outra tradição teórico-metodológica da antropologia.

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Quando estudei antropologia em Paris, no final dos anos 90, a corrente perspectivista e a virada ontológica eram predominantes, especialmente na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais).ehess), no qual ela foi inscrita para escrever um relatório sobre o dea sob a direção de Philippe Descola. Foi quando comecei a me familiarizar com o trabalho e as discussões acadêmicas de vários pesquisadores que seguiam essa linha de pensamento, muitos deles convidados por Descola para cursos e seminários. Entre esses convidados, lembro-me, por exemplo, de ouvir Viveiros de Castro, Carlos Fausto, Stephen Hugue Jones e Els Lagrou. Tanto o trabalho dos pesquisadores convidados que acabei de mencionar quanto o de pesquisadores franceses que trabalham com assuntos relacionados, como Anne-Christine Taylor, Dimitri Karadimas e Jean-Pierre Chaumeil, para mencionar apenas alguns por falta de espaço, foram fontes enriquecedoras de aprendizado, permitindo que aprendêssemos e explorássemos tópicos como cosmologias ameríndias, sistemas de pensamento nativo, taxonomias indígenas, sistemas de parentesco, cantos xamânicos, antropologia dos sentidos, o papel social de objetos rituais como máscaras e assim por diante.

Por outro lado, ao desenvolver minhas reflexões e pesquisas etnográficas, percebi que em muitos casos era difícil aplicar as teorias e os métodos propostos pelo perspectivismo na Amazônia aos contextos mexicanos. Como exemplo, mencionarei algumas reflexões que me levaram a uma análise da figura de Kauyumari entre os Wixaritari (Huichol), porque há figuras mitológicas e rituais que são "boas de se pensar" porque escapam de toda circunscrição ontológica: temos um personagem do tipo trapaceiroambíguo, contraditório, paradoxal, imperfeito, que nem sequer sabe se realmente existe, pois seu nome significa literalmente "aquele que não conhece a si mesmo". Em outras palavras, ele é um ser e um não-ser ao mesmo tempo (Kindl, 2019: 134). Como usar o conceito de ontologia em tais casos? Este exemplo questiona tanto o conceito de ontologia de Viveiros de Castro quanto o conceito de figuração ontológica de Descola (2006).

Certamente, as contribuições dos estudos perspectivistas tiveram um impacto em meu trabalho, bem como na antropologia em geral, para pensar sobre a possibilidade de uma teoria e prática descolonizadoras dentro das ciências sociais. Um questionamento radical da "colonialidade do conhecimento" aplicado à prática etnográfica na qual o discurso e a visão de mundo do nativo (Viveiros de Castro, 2016 [2002]: 29-69), ou seja, nossos interlocutores no campo, são "levados a sério" (Viveiros de Castro, 2016 [2002]: 29-69). As abordagens de Viveiros de Castro nos convidam a refletir se a antropologia cultural não deveria ser uma antropologia intercultural e perspectivista, ou seja, uma antropologia verdadeiramente intercultural e não simplesmente uma antropologia cultural que reflete sobre a interculturalidade. Essa parte é, em minha opinião, a parte mais salvável do perspectivismo. Entretanto, do meu ponto de vista mexicano, ainda há muito a discutir, questionar e repensar sobre a questão das ontologias e dicotomias entre sujeito e objeto, humano e não humano.

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Bibliografia

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Gabriel Bourdin PhD em Antropologia (unam). Professor e conferencista em universidades no México (enah, unam, uic, Sor Juana, entre outras), Argentina (uba, Luján, uner, unsm), Espanha (Universidade de Granada), França (Sorbonne-Université-Paris iv, Université Bordeaux-Montaigne) e Bulgária (Universidade de Sofia). Membro do Sistema Nacional de Pesquisadores (sni-conahcyt). É pesquisador em tempo integral no Instituto de Investigaciones Antropológicas de la unam. Membro pesquisador da Association Marcel Jousse, com sede em Paris.

Sua área de estudo é a antropologia da linguagem. Ele publicou recentemente A selva antropológica. Uma introdução à Anthropology of Gesture and Mimicry de Marcel Jousse. (unam, 2019); e a primeira tradução para o espanhol de O estilo oral, rítmico e mnemotécnico dos verbo-motores, por Marcel Jousseprecedido de um ensaio introdutório (unam, 2020). Publicou vários livros e artigos sobre o tema do corpo e das emoções na língua maia. Coordena o Seminário permanente de antropologia do corpo, das emoções e do gesto expressivo (IIA-iia-unam).

Olivia Kindl é professora pesquisadora do Programa de Estudos Antropológicos do El Colegio de San Luis. Nascida em Paris, ela é formada em Etnologia pela Escola Nacional de Antropologia e História. Recebeu o Prêmio Nacional "Fray Bernardino de Sahagún" por sua tese "A jícara Huichol: um microcosmo mesoamericano". Seu doutorado em Etnologia foi concedido pela Universidade de Paris X-Nanterre. Sua pesquisa se concentrou, a partir da antropologia da arte e das teorias do ritual, na análise das artes visuais dos Wixaritari (Huichol), que ele comparou com as dos Coras, Tepehuanes e populações das terras altas de Potosi. Mais recentemente, suas análises foram vinculadas às teorias do desempenho e a antropologia das técnicas. Ele também se aventurou na etnoarqueologia e na antropologia histórica. Seus trabalhos científicos e populares foram publicados no México, na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. Para obter mais informações, consulte https://www.colsan.edu.mx/p/nu_acad.php?str=25

Arturo Gutiérrez del Ángel é professor-pesquisador do Programa de Estudos Antropológicos do El Colegio de San Luis. Ele é membro do Sistema Nacional de Pesquisadores (SNI) desde 2008. Sua pesquisa gira em torno de mitologia, religiões e rituais. Especializou-se em antropologia visual, particularmente na relação entre fotografia, expressões plásticas e culturais. Trabalhou com grupos do oeste e do norte do México, como os Wixaritari e os Na'ayari. Publicou cinco livros como autor e seis livros como coautor, além de publicações em revistas nacionais e internacionais. Expôs seu trabalho fotográfico em museus e galerias; tem 20 exposições de fotografias relacionadas à Ásia, "El instante de la mirada: 5 países de Asia".

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EncartesVol. 7, No. 14, setembro de 2024-fevereiro de 2025, é uma revista acadêmica digital de acesso aberto publicada duas vezes por ano pelo Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, Calle Juárez, No. 87, Col. Tlalpan, C. P. 14000, Cidade do México, P.O. Box 22-048, Tel. 54 87 35 70, Fax 56 55 55 76, El Colegio de la Frontera Norte Norte, A. C.., Carretera Escénica Tijuana-Ensenada km 18,5, San Antonio del Mar, núm. 22560, Tijuana, Baja California, México, Tel. +52 (664) 631 6344, Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Occidente, A.C., Periférico Sur Manuel Gómez Morin, núm. 8585, Tlaquepaque, Jalisco, tel. (33) 3669 3434, e El Colegio de San Luís, A. C., Parque de Macul, núm. 155, Fracc. Colinas del Parque, San Luis Potosi, México, tel. (444) 811 01 01. Contato: encartesantropologicos@ciesas.edu.mx. Diretora da revista: Ángela Renée de la Torre Castellanos. Hospedada em https://encartes.mx. Responsável pela última atualização desta edição: Arthur Temporal Ventura. Data da última modificação: 25 de setembro de 2024.
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