Recepção: 20 de julho de 2022
Aceitação: 11 de agosto de 2022
O documentário antropológico. Uma introdução teórico-prática
Carlos Y. FloresCentro de Investigaciones Multidisciplinarias sobre Chiapas y la Frontera Sur, 2020, México, 242 pp.
O novo livro de Carlos Y. Flores oferece uma excelente oportunidade para refletir sobre algumas questões cruciais para a antropologia visual e para discutir certos paradoxos e controvérsias encontradas dentro do cinema antropológico. Para começar, poderíamos questionar a própria categoria de "documentário antropológico", que poderia muito bem ter sido "cinema etnográfico" - talvez mais consolidado no meio a nível internacional - ou alguns outros dos vários termos propostos por diferentes autores (cinetnografia, etnocinema, etnoficção, etc.). Não é que um nome seja mais correto do que outro, mas a escolha de qualquer um deles inevitavelmente enfatiza certas nuances e pressupostos, ao mesmo tempo em que se distingue de outros possíveis, tornando, assim, mais claros e delineando os contornos do tipo de cinema que nós antropólogos fazemos ou estudamos. É sempre produtivo discutir em profundidade nossas categorias e fundamentos conceituais, e a leitura deste livro nos leva implicitamente a esta tarefa.
O documentário antropológico. Uma introdução teórico-prática coleta e sistematiza vários postulados de autores clássicos e contemporâneos da antropologia visual internacional que ainda não foram traduzidos para o espanhol. Assim, ele constitui um material didático valioso que era extremamente necessário para o treinamento de estudantes de língua espanhola. O livro tem um duplo potencial: pode ajudar os estudantes de antropologia e ciências sociais a abordar o cinema documental; mas também pode ajudar cineastas e estudantes de cinema a compreender melhor o valor antropológico de sua prática.
O conteúdo do livro é o produto de vários anos de pesquisa no campo da antropologia visual, um forte interesse na produção audiovisual, assim como uma longa experiência de ensino por parte de Carlos Y. Flores. Teoricamente, está muito bem fundamentada, baseando-se em múltiplas fontes bibliográficas e filmográficas, referências de diferentes disciplinas e escolas de pensamento, assim como de diferentes gêneros e tradições cinematográficas.
Gostaria de destacar dois grandes pontos fortes neste trabalho de Carlos Y. Flores. Por um lado, fornece uma perspectiva crítica, muito consciente e sensível às tramas de poder por trás da representação audiovisual de diversas culturas e diferentes grupos sociais. Por outro lado, sua originalidade reside no fato de se aproximar do campo do documentário antropológico principalmente a partir de suas expressões no México e na América Latina, mas sem descuidar dos marcos históricos em escala global. Entretanto, com base no grande respeito e admiração que tenho pelo autor, gostaria também de ressaltar alguns aspectos do livro que considero discutíveis.
Considero problemático que ao longo do livro o autor se refira recorrentemente à linguagem audiovisual e às obras cinematográficas como "textos visuais" ou "textualização audiovisual". Em uma nota de rodapé (p. 12), Flores explica e justifica em que sentido usa os termos "texto" e "textualização", com um critério amplo que também engloba "documentos, imagens, sons e assim por diante". E de fato, se nos referimos a sua origem etimológica, "texto" vem do latim textumque se refere à tecelagem. Desta forma, a textualização, segundo o autor, pode ser entendida como um tecido, como a construção ou tecelagem de um discurso a partir de diferentes elementos ("fotografias, pinturas, filmes, vídeos").
Entretanto, além desta precisão conceitual, ainda me parece delicado homologar nominalmente a imagem com o texto, especialmente em um livro voltado para aqueles que são novos na produção audiovisual. Há várias décadas, Margaret Mead falou da dificuldade da antropologia visual em se distanciar da antropologia, descrita como uma disciplina de palavras. Esta separação lhe pareceu crucial para legitimar e consolidar um tipo diferente de antropologia, que é fundada e construída em torno do poder da imagem. Mais recentemente, a antropologia dos sentidos e o cinema etnográfico sensorial também têm insistido na necessidade de liberar a imagem do peso da linguagem verbal. De acordo com seus postulados, as imagens são muito mais do que sinais lingüísticos. Se as imagens forem reduzidas ou equiparadas a figuras textuais, elas perdem muito de seu poder poético, estético, epistemológico e evocativo. Portanto, não considero conveniente subsumir ou simplificar o poder da imagem ao domínio do textual; ao contrário, proponho tratá-la de forma diferente e pensar nela como uma entidade especial, autônoma e independente do discurso textual, com suas próprias qualidades, limites e abrangência.
Outro aspecto que gostaria de discutir em relação a este livro é que a ênfase na perspectiva crítica, centrada nas assimetrias e disputas de poder por trás da representação audiovisual das culturas - que é sem dúvida uma perspectiva absolutamente necessária - pode obscurecer ou tornar invisíveis outras dimensões igualmente importantes da imagem, tais como a qualidade estética, performativa, sensorial e afetiva da experiência cinematográfica, e até mesmo seu caráter não representativo.
Dito isto, considero muito original e sugestiva a proposta do autor de que os estilos ou formas de representação no filme documental podem ser entendidos como "dispositivos de poder"; acredito que esta intuição poderia ser expandida e desenvolvida ainda mais para entender como os modos de representação contêm em si chaves para interpretar as redes políticas por trás dos filmes, independentemente de seu conteúdo. Neste sentido, também seria interessante refletir sobre como estes modos de representação se tornam e constituem escolas, tradições, correntes artísticas ou subgêneros cinematográficos.
Quando falamos de cinema etnográfico, a discussão quase sempre gira em torno do que faz um filme etnográfico, mas raramente nos perguntamos em que sentido é relevante chamá-lo de etnográfico. cinema. Algo semelhante acontece no livro; ele discute magistralmente a natureza antropológica de certos documentários, mas uma caracterização mais substantiva do próprio gênero documental é evitada. Como já observamos, o texto se concentra principalmente na política de representação cultural, a partir de uma antropologia crítica, mas dificilmente aborda o documentário como um gênero cinematográfico, com sua especificidade, seus desafios e suas potencialidades.
Há cada vez mais estudos e tratados sobre a teoria, filosofia e história do documentário, sobre suas formas contemporâneas, suas vanguardas e novos aspectos, suas conexões com outros campos do conhecimento e disciplinas artísticas, tanto em inglês e espanhol quanto em outras línguas. Da mesma forma, além da academia, em museus, festivais, bibliotecas de cinema, de crítica cinematográfica e curadoria, nos últimos anos tem sido produzido um grande número de ensaios e reflexões sobre o documentário. Entendo perfeitamente que o objetivo do livro não era mergulhar neste assunto. corpus do conhecimento, mas também não deve ser subestimado.
Por outro lado, sinto que a questão da circulação e distribuição de filmes documentários etnográficos ou antropológicos é mencionada de forma um tanto esparsa no livro. A questão do público, da recepção, da formação do público, assim como a distribuição e exibição de filmes em festivais, exposições, congressos ou fóruns acadêmicos, e os usos dos documentários por organizações ou movimentos sociais como instrumento de luta política e transformação social, poderia dar muito que pensar sob uma perspectiva antropológica, considerando o cinema como um fato social total, como um fenômeno cultural muito complexo que revela os mundos contemporâneos.
Na segunda parte do livro, que trata das técnicas e habilidades necessárias para a produção audiovisual, surgem alguns paradoxos muito interessantes. Primeiro, é essencial reconhecer que um manual de técnicas de produção de filmes terá sempre um escopo limitado; ele nunca poderá resolver totalmente o ensino prático. Deve-se enfatizar que os guias para a realização de filmes nunca substituem a necessidade de praxis; é essencial aprender à medida que se vai, por tentativa e erro: você aprende fazendo bagunça, e ninguém experimenta na cabeça de outra pessoa.
O segundo dilema técnico é que o conteúdo deste livro, como o de qualquer guia prático, corre o risco de tornar-se ultrapassado e anacrônico diante do rápido avanço da tecnologia. Vários aspectos do uso de câmeras e microfones são explicados em grande detalhe. Mas as câmeras de hoje não se parecem com as utilizadas no início dos anos 2000 e certamente não se assemelharão às que virão nos próximos anos. O que fazer diante deste dilema? Além disso, as novas gerações de "nativos digitais" já não estão acostumadas a este tipo de instrução, elas nascem de alguma forma com o chip integrados ou usar tutoriais do YouTube para responder a perguntas específicas.
Uma última preocupação em relação à parte prática do livro. Apesar de a primeira parte do livro discutir a grande variedade de formas que o documentário antropológico pode assumir, a parte prática trata apenas de um tipo de produção: o documentário testemunhal baseado em entrevistas. O livro enfoca de forma maravilhosa o processo de preparação, condução e gravação em vídeo de uma entrevista antropológica. Mas algumas notas ou dicas sobre a realização de outros estilos menos convencionais de documentários antropológicos, por exemplo, a gravação de uma narração auto-reflexiva ou ensaística; o manuseio de câmeras e microfones na produção direta ou observacional de filmes; o uso de material de arquivo de vários tipos; ou dicas para um filme mais contemplativo ou multisensorial.
No relato histórico do livro sobre o desenvolvimento do documentário antropológico no México, há uma ruptura abrupta no final do século 20. xx. Autores como Nicolás Echevarría e Alfonso Muñoz são mencionados, mas quase tudo o que aconteceu desde o início do xxiO documentário é um gênero novo e empolgante, ignorando os novos desenvolvimentos que trouxeram uma revolução qualitativa no gênero. Há uma falta de reflexão sobre os movimentos atuais, instituições, laboratórios, redes, coletivos, bem como sobre as tendências contemporâneas do documentário antropológico, como a etnografia multissensorial, que tem sido ao mesmo tempo controversa e influente nos últimos anos.
O livro também oferece apenas uma amostra das novas formas narrativas geradas pelas novas tecnologias digitais, que deram origem a filmes antropológicos inovadores que empregam realidade virtual, inteligência artificial, câmeras de 360 graus, drones, ou que abordam o cinema interativo, expandido, transmídia ou interativo. web doc. Embora a reflexão sobre essas novas linguagens, mídias e interfaces fosse objeto de uma publicação separada, valeria a pena apontar as dimensões antropológicas que são aprimoradas ou perturbadas (por exemplo, autoria e autoridade, natureza participativa, colaborativa ou interativa, narrativas não lineares, possibilidade de polifonia e intermedialidade) e suas implicações para o trabalho etnográfico e o conhecimento antropológico.
Em conclusão, eu gostaria de salientar que O documentário antropológico é um livro fundamental para a antropologia audiovisual ibero-americana, que sem dúvida contribuirá significativamente para a formação das novas gerações. De agora em diante, sem dúvida, fará parte da bibliografia básica dos cursos ministrados por aqueles de nós que se dedicam ao ensino neste campo. Neste sentido, saúdo muito a coerência que existe entre o conteúdo do livro e sua estratégia de divulgação. Trata-se de um e-book de acesso aberto para download gratuito, que garante sua adoção por estudantes e professores, que são precisamente os interlocutores procurados por este trabalho. A forma de distribuição é, neste caso, parte da substância e uma das contribuições mais substanciais deste livro.
Antonio Zirión Pérez é palestrante e pesquisador no Departamento de Antropologia do uam-Iztapalapa). Membro do Sistema Nacional de Pesquisadores, nível 1. Doutor em Ciências Antropológicas pelo uam-Eu, MA em Antropologia Visual pela Universidade de Manchester e etnólogo pela Escola Nacional de Antropologia e História. Autor e coordenador de vários livros e artigos especializados em antropologia visual, cinema etnográfico, cultura urbana, sentidos e emoções. Ele também é fotógrafo e documentarista, com dois livros fotográficos e documentários publicados que receberam importante reconhecimento nacional e internacional. Por mais de quinze anos ele trabalhou como gerente cultural, curador e jurado em vários museus, exposições e concursos de cinema, fotografia e artes visuais, e como programador em festivais internacionais de documentários como DocsMX e Ambulante.