A ascensão política de atores religiosos conservadores. Quatro lições do caso brasileiro

Recepção: 2 de julho de 2020

Aceitação: 27 de agosto de 2020

Sumário

Atores religiosos conservadores assumiram uma proeminência política crescente no Brasil e contribuíram para a eleição de Jair Bolsonaro. Complementando as lições políticas dessa ascensão, este artigo se concentra em quatro lições analíticas. A primeira seção desafia a ideia de um "voto evangélico". Embora a maioria dos evangélicos tenha votado em Bolsonaro, eles não votaram como um bloco, e a polarização da sociedade brasileira se refletiu em diferentes ramos do evangelicalismo. A segunda parte contesta a relevância da afiliação religiosa como uma categoria analítica central para apreender o fenômeno. Por trás de uma aparente oposição entre católicos e evangélicos, a batalha é entre correntes conservadoras e progressistas que atravessam cada religião. A terceira parte lembra que um fator central nessa ascensão política pode ser encontrado em uma mudança escatológica, que favorece o envolvimento dos paroquianos na arena política. A quarta seção questiona a oposição radical entre governos progressistas e atores religiosos conservadores e enfatiza a consolidação desses últimos na arena política durante as presidências do Partido dos Trabalhadores.

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Evangélicos conservadores e política: algumas lições no caso do Brasil

Este artigo argumenta que as categorias analíticas relevantes para entender o protagonismo político de atores religiosos conservadores no Brasil não são a adesão a uma igreja, mas sim as tendências conservadoras e progressistas que passam por obediências religiosas. O argumento é sustentado por uma análise da distribuição dos eleitores das eleições presidenciais por religião, vencida por Jair Bolsonaro e que destaca a importância da mudança escatológica operada pelos evangélicos conservadores no Brasil. Eles assumiram o compromisso político como uma ferramenta para a transformação moral e cultural da sociedade. Esse projeto de longo prazo passou pela consolidação do protagonismo político dos evangélicos conservadores durante os mandatos dos presidentes progressistas.

Palavras-chave: Conservadorismo, evangélicos, Brasil, neopentecostais, política.


Em 2016, no que muitos analistas consideram um "golpe de Estado institucional" (Jinkings Murilo, 2016), 52 dos 513 deputados federais brasileiros que votaram no processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff declararam que o fizeram em nome de Deus e por motivos religiosos (Almeida, 2017). Dois anos depois, o presidente de extrema direita do Brasil, Jair Bolsonaro, se beneficiou do forte apoio de líderes evangélicos conservadores durante a campanha eleitoral de 2018. Católico, "batizado" na Jordânia por um pastor neopentecostal (Oualalou, 2019), ele adotou como slogan de sua campanha "Brasil acima de tudo. Deus acima de tudo", e intitulou seu programa de governo "o caminho da prosperidade", em referência direta à "teologia da prosperidade" professada por pastores neopentecostais.

Nesses dois episódios-chave da política brasileira contemporânea, os atores religiosos conservadores desempenharam um papel fundamental e invocaram explicitamente sua fé como motivação para seu voto e ação política. Em seu artigo "O povo evangélico: construção hegemônica, disputa de minorias e reação conservadora", o proeminente cientista político e sociólogo da religião Joanildo Burity analisa alguns dos principais mecanismos do crescente protagonismo dos evangélicos conservadores no cenário político brasileiro. Ele mostra a necessidade de situá-los em um processo histórico que, desde a década de 1980, tem dado crescente proeminência a atores religiosos conservadores na arena política brasileira. A relevância de seu artigo e de sua análise vai além do caso do Brasil. Atores religiosos conservadores têm adquirido crescente influência política em vários países das Américas e do mundo. Para aqueles que não moram no Brasil e não são especialistas nesse país, o artigo de Joanildo Burity é um convite para aprender as lições de um processo religioso, político, cultural e social que levou um político menor de extrema direita à presidência da República do maior país da América Latina.

Nessa perspectiva, esta contribuição combina uma análise do "voto evangélico" nas eleições presidenciais de 2018 no Brasil com análises de evoluções religiosas, políticas e culturais de maior alcance que constituem fatores importantes na crescente influência política de atores religiosos conservadores. Desde a análise do voto dos paroquianos evangélicos em 2018 até as evoluções escatológicas implementadas por uma parte dos líderes evangélicos no Brasil, mostra que os evangélicos não têm comportamentos políticos e eleitorais uniformes. Portanto, argumento que é necessário rejeitar os "evangélicos" como uma categoria analítica relevante em termos de comportamento eleitoral e relacionamento com a política.

O apoio dos evangélicos foi decisivo para a vitória eleitoral do líder da extrema direita brasileira. Entretanto, os evangélicos não agiram como um bloco por trás de sua candidatura. Pelo contrário, a polarização da sociedade brasileira se refletiu nos diferentes ramos do evangelicalismo e, em particular, entre os paroquianos das igrejas neopentecostais. Com base nas pesquisas eleitorais, argumento que a polarização da sociedade brasileira se reflete entre os correligionários neopentecostais, pois eles adotaram atitudes contrastantes em relação aos dois candidatos nas eleições presidenciais.

Isso não significa negar que a religião seja um fator importante no cenário político brasileiro. Entretanto, como sugere a segunda seção do artigo, as categorias analíticas relevantes não são a adesão ao catolicismo ou a uma igreja evangélica, mas a orientação conservadora ou progressista dos paroquianos. A batalha que está ocorrendo no Brasil, como em várias regiões do mundo, não coloca católicos de um lado contra evangélicos de outro, mas sim correntes religiosas conservadoras e progressistas que atravessam diferentes denominações religiosas.

Na terceira seção, argumento que o principal fator por trás da crescente presença política dos neopentecostais e dos evangélicos conservadores é uma mudança escatológica. Os líderes das igrejas pentecostais e neopentecostais difundiram uma nova maneira de interpretar as Escrituras no Brasil, que se traduz em uma mudança na relação entre a religião e o mundo, especialmente nos assuntos econômicos e políticos. A quarta seção aponta para uma lição política do caso brasileiro: os atores religiosos conservadores se consolidaram e se tornaram atores políticos importantes no cenário brasileiro durante os mandatos de presidentes progressistas.

Os evangélicos na eleição presidencial de 2018

A contribuição dos evangélicos para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 tornou-se uma referência frequentemente citada entre cientistas políticos e sociólogos para ilustrar a força que os evangélicos ganharam no cenário político brasileiro.

Como a afiliação religiosa do eleitor não é indicada nos resultados das eleições, os analistas brasileiros se baseiam na pesquisa pré-eleitoral nacional, realizada pelo Instituto Datafolha em 24 e 25 de outubro de 2018, três dias antes das eleições de 28 de outubro de 2018. Os resultados da pesquisa foram revelados como muito próximos da votação no segundo turno e têm a vantagem de mostrar a distribuição das intenções de voto por afiliação religiosa. Ela mostra que os evangélicos deram a Bolsonaro 11,55 milhões de votos a mais do que o candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad. Isso é mais do que os 10,72 milhões de votos que separaram os dois candidatos no segundo turno da eleição.

Essa pesquisa continua sendo um dos dados mais usados entre os analistas para afirmar o apoio maciço dado pelos evangélicos a Bolsonaro (veja, por exemplo, Diniz, 2018; Oualalou, 2019; Almeida, 2019) e para provar o peso dos evangélicos nessa eleição, bem como seu peso crescente como ator na política brasileira. Portanto, é apresentado como um caso ideal para testar a validade de "evangélicos" como uma categoria analítica de comportamento político e eleitoral.

No entanto, além da contribuição decisiva dos evangélicos para a vitória de Bolsonaro, essa mesma tabela também aponta para outras lições que, embora menos espetaculares, não são menos relevantes para a compreensão da relação entre religião e política no Brasil (e em outros países). Dois números em particular questionam a homogeneidade interna das denominações religiosas em termos de suas preferências eleitorais.

Tabela 1

Distribuição do eleitorado por religião. Diniz Alves (2018), com base na pesquisa Datafolha de 24-25 de outubro de 2018.1

  1. Cerca de um terço dos evangélicos (31.74%) votou contra Bolsonaro e a favor de Haddad. Embora Bolsonaro tenha obtido apoio majoritário entre os evangélicos, eles não agiram como um bloco único. Apesar do clima "anti-PT" que dominou o palco e a mídia brasileira (Bringel e Domingues, 2018), mais de dez milhões de evangélicos votaram no candidato do PT.
  2. Se os evangélicos não foram unânimes, os católicos foram ainda menos. Seus votos foram divididos em proporções quase iguais entre os dois candidatos, com uma leve vantagem para Bolsonaro. Sem os 50.14% de católicos que votaram nele, ele não teria vencido a eleição.

A categoria de "evangélicos" agrupa uma grande diversidade de igrejas e denominações. De fato, os dados da mesma pesquisa mostram diferenças significativas entre seus vários ramos. A Tabela 2 revela que o padrão de votação dos evangélicos neopentecostais (49% a favor de Bolsonaro) está muito mais próximo dos católicos (44%) do que de outras denominações evangélicas, particularmente os pentecostais (62%).

Tabela 2

Pergunta: No próximo domingo, haverá um segundo turno das eleições para Presidente da República. Se o segundo turno das eleições fosse hoje, em quem você votaria? (Resposta estimulada e única, em %). Fonte: Datafolha, 2018: 31.

Outra lição importante dessa pesquisa está nos resultados de outra pergunta, muito menos comentada do que a anterior.

Embora o país sempre tenha sido dividido entre diferentes posições sociais e políticas e caracterizado pelo racismo e pela violência institucional (Costa de Almeida, 2019), ele foi seguido por um processo de polarização crescente após os protestos de junho de 2013 (Bringel e Pleyers, 2015). Essa polarização aumenta a divisão da sociedade brasileira em posições marcadas por uma rejeição radical do campo político adversário. Nessa pesquisa eleitoral, a polarização se reflete nos altos números de rejeição absoluta aos dois candidatos no turno final das eleições de 2018. Assim, 44% dos pesquisados não votariam em Bolsonaro por nenhum motivo, percentual que cresce ainda mais em relação a Haddad (52%).

Tabela 3

"Entre esses candidatos à presidência, gostaria que o(a) sr(a) me dissesse se votaria com certeza, talvez votasse ou não votaria de jeito nenhum." (Resposta única, em %). Fonte: Datafolha, 2018: 43.

A campanha de Bolsonaro foi tanto um resultado quanto uma intensificação dessa polarização, a ponto de ele ter mediatizado sua proximidade com as igrejas pentecostais e neopentecostais, beneficiando-se do apoio de seus principais líderes políticos, religiosos e da mídia durante essa campanha tão conflituosa. As análises apontam para o impacto decisivo do voto evangélico em favor de Bolsonaro, que não teve um apoio tão claro entre os paroquianos de nenhuma outra denominação. Os dados pareciam comprovar o cenário de uma polarização entre as igrejas evangélicas (mais a minoria judaica) e o restante da sociedade.

O que essa pesquisa indica é uma realidade muito diferente. Ela mostra a polarização da sociedade brasileira, não está ativo apenas entre diferentes afiliações religiosas, mas também dentro de cada uma delas.

A divisão dos católicos contra Bolsonaro, vista na Tabela 1, revela uma primeira lacuna nesse cenário, com uma proporção idêntica e muito alta rejeitando ambos os candidatos. Assim, 48% dos católicos declaram que não votariam em Bolsonaro por nenhum motivo, porcentagem que se repete para Haddad (Tabela 3).

No entanto, o que quebra o cenário de polarização entre diferentes afiliações religiosas é o caso dos neopentecostais. A forte proeminência de seus líderes durante a campanha eleitoral de Bolsonaro, juntamente com a promoção de temas morais conservadores na política e na mídia brasileiras, sugeriu um apoio maciço ao candidato entre seus paroquianos.

A pesquisa mostra o contrário, sendo um dos ramos mais divididos em relação ao candidato conservador. Quando pesquisados três dias antes das eleições, 44% dos neopentecostais escolheram a opção "não votaria de jeito nenhum" em Jair Bolsonaro, a mesma porcentagem dos que votariam com certeza nele (outros 9% talvez votassem nele, e 3% não sabiam). Já no caso de Fernando Haddad, 331 PT3T votariam "com certeza" nele (371 PT3T de católicos), e 521 PT3T sem motivo (a mesma porcentagem entre os católicos) (Datafolha, 2018: 43).

Por outro lado, as atitudes dos neopentecostais em relação a Bolsonaro e Haddad confirmam uma proximidade muito maior com os eleitores católicos (46% com certeza e 44% de forma alguma), com números quase idênticos, em relação aos outros ramos evangélicos. De fato, os números sugerem que uma categoria ainda mais relevante, e que revelaria o impacto da afiliação religiosa nas atitudes de forte apoio ou rejeição aos candidatos, seria separar os neopentecostais dos demais evangélicos (tradicionais, pentecostais e outros evangélicos), que têm preferências muito mais semelhantes (Tabela 4).

Tabela 4

Diferenças entre evangélicos neopentecostais, católicos, outros evangélicos e a população nacional. Composição do autor com base nos números do Datafolha (2018: 43) retirados da tabela 3 e considerando as ponderações entre os ramos evangélicos.

Provavelmente, a descoberta mais surpreendente dessa pesquisa é que, entre todas as categorias religiosas, a atitude dos neopentecostais em relação aos dois candidatos é a mais próxima da média brasileira. Em outras palavras, os paroquianos neopentecostais eram tão polarizados entre si quanto a sociedade brasileira como um todo.

Essa polarização interna dos neopentecostais contrasta com a forte mobilização de seus próprios líderes religiosos e políticos em favor de Bolsonaro. Durante toda a campanha eleitoral, o candidato de extrema direita pôde contar com as redes sociais, a experiência e o apoio material das igrejas conservadoras, incluindo o terceiro maior canal de televisão do Brasil (Intervozes, 2019), TV Record. Esse canal faz parte de um conglomerado de propriedade do fundador e líder da maior igreja neopentecostal do Brasil, o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. Embora seja provável que a mobilização desses líderes religiosos tenha tido um impacto em parte do eleitorado, os resultados dessa pesquisa sugerem que eles não conseguiram unificar seus fiéis em torno de seu candidato e que seu efeito foi bastante limitado, tanto entre eles quanto em relação à população brasileira como um todo.

São necessários mais estudos qualitativos e quantitativos para explicar e aprofundar essa impressionante polarização interna entre os neopentecostais brasileiros e o contraste com a imagem dada por líderes religiosos, políticos e da mídia dessas igrejas como uma base eleitoral sólida e inquestionável para Bolsonaro. Uma hipótese crível que vale a pena testar é que essa ruptura entre afiliação religiosa e voto entre os neopentecostais brasileiros pode ser vista como uma extensão em outra esfera de um fenômeno demonstrado por uma longa série de estudos sobre religião na América Latina (De la Torre e Martín, 2016): a ruptura da falsa singularidade entre crença e pertencimento.

Os atores da batalha

A eleição presidencial de 2018 é amplamente usada para ilustrar a força dos evangélicos no cenário político brasileiro. Uma análise aprofundada dessa pesquisa não nega o impacto dos evangélicos conservadores na vitória eleitoral de Bolsonaro, nem a força que adquiriram no cenário político brasileiro, mas questiona a relevância de "evangélicos" como unidade de análise.

Dada sua estrutura descentralizada, a ausência de uma autoridade moral comum para interpretar as escrituras e a autonomia de suas igrejas, a heterogeneidade interna dos "evangélicos" é vasta em quase todas as questões e preferências. Joanildo Burity insiste na heterogeneidade dos evangélicos, "é preciso admitir que não há um centro irradiador, nem de sentido nem de direção, do que significa ser evangélico. Ele se tornou uma afiliação que reagrupa correntes muito diversas, em termos de sua interpretação da Bíblia, sua maneira de se conectar com o mundo e a política ou suas práticas". No entanto, muitas análises e estatísticas disponíveis sobre participação política continuam a apontar os "evangélicos" como unidade analítica, indicando, por exemplo, quem vota e como se distingue dos católicos, quantos participam como candidatos em cada partido político (Gerardi Dirceu, 2016: 16) ou o número de "evangélicos" eleitos para o parlamento em eleições sucessivas (Tadvald, 2015).

A adoção de afiliações religiosas como as principais categorias analíticas leva a ocultar a heterogeneidade interna de cada confissão. Também leva a ocultar outras divisões e tensões que têm maior relevância analítica para a compreensão dos atores religiosos brasileiros e sua relação com a política. Esse é particularmente o caso da divisão entre correntes conservadoras e progressistas que atravessa as religiões e os ramos do evangelicalismo.

A batalha que está sendo travada no Brasil, assim como em várias regiões do mundo, não coloca católicos de um lado contra evangélicos do outro, mas correntes conservadoras e progressistas que atravessam essas religiões e suas igrejas. Os fiéis de ambos os lados se dividiram na votação de Bolsonaro, e estão divididos em inúmeras questões. A batalha que mais uma vez assume grande importância no campo político, cultural e social opõe atores históricos que não correspondem precisamente a igrejas ou organizações, mas que as atravessam. Esses atores religiosos progressistas e conservadores podem ser interpretados como movimentos sociais no sentido dado por Alain Touraine (1981): atores históricos que têm uma visão de mundo e contestam as orientações culturais de uma sociedade.

O movimento religioso progressista que Michael Löwy (1997) identificou como "cristianismo de libertação" é acompanhado por outro movimento conservador e reacionário que ganhou força no Brasil e em várias regiões do mundo, tanto entre os evangélicos quanto entre os católicos. De fato, até o início dos anos 2000, as correntes católicas conservadoras eram mais proeminentes do que as neopentecostais na vida social e política brasileira. Brenda Carranza e Christina Vital da Cunha (2018) mostram, por exemplo, como, durante a década de 1990, os representantes neopentecostais operaram como uma força de apoio aos católicos conservadores em torno de causas comuns, como a oposição ao aborto. Vale lembrar também que a "ideologia de gênero" não é uma invenção neopentecostal, mas católica (Junqueira, 2017). Ela surgiu em meados da década de 1990, no Pontifício Conselho para a Família e na Congregação para a Doutrina da Fé. Em 1997, o Cardeal Ratzinger publicou o livro A agenda de gêneroque continua sendo uma referência essencial entre os fundamentalistas católicos e neopentecostais para uma agenda moral centrada em questões como a oposição ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Por outro lado, está claro que nem todos os evangélicos são conservadores. Os paroquianos luteranos, metodistas e presbiterianos que formam a maioria dos "evangélicos históricos" têm se envolvido em correntes progressistas, como a teologia da libertação, em proporções semelhantes às dos católicos no Brasil (Löwy, 1997, capítulo 8). De fato, vários representantes desses "evangélicos históricos" optaram por não se juntar à influente "frente evangélica" ou "bancada evangélica" que reúne deputados e senadores evangélicos conservadores de diferentes partidos.

Entre as lições de Alain Touraine (1981) para o estudo dos movimentos sociais mais relevantes para a compreensão dos atores religiosos no cenário político brasileiro está a de evitar a confusão entre um movimento social (considerado como um ator histórico) e uma organização concreta. Da mesma forma, no Brasil, As categorias analíticas relevantes não são as igrejas ou a adesão ao catolicismo ou a uma igreja evangélica, mas as correntes religiosas conservadoras e progressistas que permeiam essas igrejas. A batalha entre os atores religiosos conservadores e progressistas não coloca a Igreja Católica contra as igrejas evangélicas. Pelo contrário, ela é transversal a essas organizações religiosas. Como Joanildo Burity explica em seu artigo, "foi necessário derrotar segmentos moderados ('progressistas') do campo evangélico, histórico e pentecostal para que surgisse a face francamente reacionária de uma poderosa elite parlamentar e pastoral". Da mesma forma, a virada conservadora no Vaticano, que se fortaleceu com João Paulo II, traduziu-se em uma luta contra a teologia da libertação, juntamente com a marginalização de padres e bispos próximos a essa corrente na Igreja Católica brasileira e latino-americana (Houtart, 2006; Pleyers, 2020).

Uma mudança escatológica

No Brasil, assim como na maioria dos países da América Central e do Sul, novas igrejas evangélicas estão atraindo um número crescente de paroquianos. Em 1980, o Brasil tinha 89% católicos e era uma das principais áreas do cristianismo progressista. No último censo disponível (Datafolha2016), apenas 50% da população se identifica como católica e a proporção de "evangélicos históricos" permaneceu estável nos últimos 40 anos: 6,6% em 1980 e 7% em 2016. Enquanto isso, o número de fiéis nas novas igrejas evangélicas disparou. Quase inexistentes no Brasil em 1980, eles representam 22% da população nacional em 2016.

O número cada vez maior de evangelistas e o crescente impacto político das igrejas pentecostais e neopentecostais parecem ser um fator fundamental para a crescente proeminência desses atores na arena política. O aumento do número de paroquianos em suas igrejas proporcionou uma base mais ampla para que os pastores e candidatos dessas igrejas divulgassem seus discursos e reunissem mais recursos. No entanto, a principal raiz da mudança na influência política dos neopentecostais está menos na mudança quantitativa representada pelo número crescente de paroquianos do que em uma mudança qualitativa: uma nova forma de interpretar as Escrituras, que se traduz em uma mudança na relação entre a religião e o mundo, especialmente nos assuntos econômicos e políticos. Essa escatologia foi desenvolvida no Brasil por líderes de igrejas pentecostais e neopentecostais e propõe, entre outras coisas, uma visão do papel que a fé, as igrejas e os crentes devem ter na vida política.

Historicamente, a maioria dos evangélicos rejeitou explicitamente o mundo e a política, motivados por uma ética ascética e puritana orientada para a conquista da salvação extramundana (Algranati, 2010). No Brasil, até o início da década de 1980, a maioria das igrejas pentecostais se opunha à participação política nos processos eleitorais (Mariano, 2011). E, ainda hoje, muitos evangélicos separam o político do religioso e evitam ser protagonistas no cenário político.

Quando o protestantismo convidou os crentes a fugir dos valores mundanos para ganhar a salvação na vida eterna, novas interpretações das Escrituras surgiram nas igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil e ganharam impulso a partir da década de 1990, como aconteceu anteriormente nos Estados Unidos. Elas combinam duas interpretações das Escrituras. Por um lado, a "teologia da prosperidade" não exorta os paroquianos a rejeitarem os valores mundanos; pelo contrário, ela vê no sucesso material os sinais da bênção divina e a recompensa por atos virtuosos (e pelo cumprimento do pagamento do dízimo à igreja). De acordo com essa interpretação, se Deus abençoa um de seus fiéis, ele lhe dá uma "bênção total" e deseja que ele seja feliz nas diferentes áreas de sua vida, desde a saúde até o sucesso profissional e sua situação financeira. Por outro lado, a "teoria do reino" convida os fiéis a "trabalhar ativamente para a restauração do reino de Deus na Terra" (Pérez Guadalupe, 2018: 38; Algranti, 2010). Os paroquianos devem contribuir para a transformação da sociedade como um todo e não apenas da comunidade de crentes, como é o caso das comunidades evangélicas históricas, conforme explicado pelo bispo fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, em seu influente livro Plano de poder. Deus, cristãos e política (2008).

Lições políticas do sucesso de atores religiosos conservadores durante os governos do PT

Como Joanildo Burity lembra em sua contribuição, a ascensão de Bolsonaro à presidência do Brasil com o apoio de várias igrejas evangélicas neopentecostais e conservadoras é a culminação de um longo processo que começou na década de 1980. Já em 1986, doze neopentecostais foram eleitos para o Congresso Federal. Nas duas últimas décadas do século xxgradualmente se envolveram na esfera pública. Seus membros se filiaram a diferentes partidos políticos e contribuíram para a fundação de alguns (Machado e Burity, 2014). Durante essas quatro décadas, os atores religiosos conservadores, e em particular os neopentecostais, demonstraram uma extraordinária capacidade de adaptação ao sistema político brasileiro e às sucessivas mudanças nas relações de forças no cenário político do país.

Uma importante lição política do caso brasileiro está na consolidação desses atores e seu impacto político, cultural e social durante os mandatos dos presidentes progressistas Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016).

Se hoje os atores políticos reacionários acusam o Partido dos Trabalhadores de todos os pecados do Brasil, em sua época os representantes conservadores neopentecostais e evangélicos se acomodaram aos governos do pt e conseguiu reforçar sua presença e peso ao longo desses 13 anos (Tadvald, 2015). A Igreja Universal do Reino de Deus, a principal igreja neopentecostal do Brasil, entrou no governo petista em 2003, primeiramente por meio do Partido Liberal (PL).pl) e depois pelo Partido Republicano Brasileiro (prb). Ele permaneceu no governo até poucas semanas antes do impeachment da Presidente Dilma Roussef (Almeida, 2019). Marcello Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Cristo e sobrinho de seu fundador, participou da fundação do Partido Republicano Brasileiro (prb), que atuou como aliado de Lula durante dois de seus mandatos presidenciais; em seguida, atuou como Ministro da Pesca e Agricultura no governo de Dilma Rousseff entre 2012 e 2014, antes de se tornar prefeito do Rio de Janeiro em 2016.

Uma ferramenta importante para a consolidação da influência dos evangélicos no cenário político brasileiro é a Frente Parlamentar Evangélica, formada em 2003, no início do primeiro mandato presidencial de Lula. Trata-se de um agrupamento de deputados e senadores de várias igrejas evangélicas eleitos por diferentes partidos políticos (Trevisan, 2013). A influência dessa frente cresceu consideravelmente durante as presidências de pt. Ela se destacou por sua grande eficácia nas negociações políticas com o governo nacional (Machado, 2012). A composição altamente fragmentada das câmaras de deputados e do senado significa que o governo tem de buscar alianças com diferentes frações para a adoção das políticas e leis que promove. Os governos de coalizão sob as presidências dos pt encontrou na frente evangélica um aliado necessário para apoiar várias leis sociais em favor das populações mais precárias. Por outro lado, o pt cederam em questões que eram centrais para a agenda dos atores religiosos conservadores. Durante seus mandatos, os presidentes progressistas usaram as questões de gênero como moeda de troca para negociar com os conservadores. Eles abriram mão das políticas públicas de gênero para manter o apoio dos evangélicos em outras áreas (Mattos, 2019).

Entre as principais conquistas da frente evangélica está o cancelamento de uma cartilha anti-homofobia para escolas públicas em maio de 2011. Em confluência com os ataques de atores religiosos conservadores contra o que eles designaram como "ideologia de gênero", o então deputado Jair Bolsonaro descreveu o programa anti-homofobia iniciado pelo governo como "ideologia de gênero". pt em 2004 como Kit-gay. Em 2011, parlamentares evangélicos e católicos conservadores ameaçaram bloquear as políticas econômicas e sociais do governo se a cartilha fosse distribuída nas escolas. Embora a cartilha tenha sido aprovada como material educacional e já tenha sido impressa, o presidente teve de ceder à pressão. Outra vitória da bancada evangélica foi a nomeação de Marco Feliciano, pastor da igreja neopentecostal "Catedral do Avivamento", conhecido por suas declarações homofóbicas, para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados em 2013 (Tadvald, 2015). Além das vitórias legislativas mais notáveis da frente evangélica, seu destaque está em inúmeros projetos de lei e emendas parlamentares formulados por evangélicos. Como apontam Brenda Carranza e Christina Vital da Cunha (2018: 489), esses projetos de lei não devem ser avaliados apenas em termos de eficácia na aprovação dessas propostas, mas como um modo de ação baseado na produção de fatos políticos para colocar questões relacionadas ao "Reino de Deus" no centro do debate público.

O fortalecimento das igrejas neopentecostais e de outros atores religiosos conservadores nunca foi o objetivo dos governos dos Estados Unidos. pt. Ao contrário, Lula pertenceu durante décadas e até hoje a uma pastoral operária, um grupo de fiéis católicos do movimento da teologia da libertação. No entanto, a consolidação desses atores ocorreu durante os mandatos dos líderes progressistas e continua sendo parte de seu legado. Sem compartilhar a agenda moral conservadora, os presidentes progressistas iniciaram colaborações com as igrejas evangélicas, incluindo seus ramos mais conservadores, para implementar programas sociais e abriram espaços para que elas fossem protagonistas na implementação de programas governamentais ou ocupassem um número crescente de canais de rádio e televisão. Eles negociaram e aproveitaram todas as oportunidades para fortalecer sua influência política e colocar sua agenda moral no centro do debate público e do espaço político brasileiro.

Conclusão

Por causa de sua história, tamanho, cultura, peso internacional e idioma, o Brasil tem sido um país à parte na América Latina. Assim, é importante levar em conta as especificidades do país para entender o sucesso dos atores religiosos conservadores e, em particular, de algumas igrejas pentecostais e neopentecostais, como atores culturais, sociais e agora políticos. Entretanto, em termos da crescente influência dos neopentecostais na arena política, o Brasil está longe de ser um caso isolado no hemisfério americano (Pérez Guadalupe, 2018).

Além disso, as igrejas neopentecostais brasileiras fazem muito mais do que participar de uma tendência continental e global. Elas se tornaram um ator importante nesse processo em nível internacional. As principais igrejas neopentecostais brasileiras têm se espalhado por vários países da América Latina, bem como pelos Estados Unidos, Portugal e outros países europeus e africanos. Assim como na década de 1990 os analistas se referiam à "exportação do evangelho americano", as igrejas neopentecostais brasileiras se tornaram um ator importante nesse processo em nível internacional.2 Na esteira do bem-sucedido proselitismo internacional dos novos evangélicos norte-americanos, existe hoje uma dinâmica semelhante e em expansão para "exportar o evangelho brasileiro". Junto com pastores neopentecostais, bispos e fluxos financeiros, há também métodos para convencer os fiéis, a mídia e uma forma de interpretar as Escrituras que os incentiva a apoiar seus correligionários, tanto nas eleições quanto na política institucional.

Tirar lições do sucesso político, social e cultural dos atores religiosos conservadores no Brasil é, portanto, uma tarefa relevante que vai muito além dos círculos de especialistas brasileiros ou estudiosos do fenômeno religioso.

Seguindo Joanildo Burity, é essencial complexificar a análise para além do fenômeno eleitoral que foi a eleição de Jair Bolsonaro. Este artigo concentrou-se em fatores explicativos em quatro áreas que fornecem uma perspectiva mais complexa e multidimensional sobre a ascensão política de uma seção de atores religiosos conservadores no Brasil. Ele desafiou quatro perspectivas analíticas que frequentemente presidem as interpretações do processo que levou os atores evangélicos conservadores a assumir uma forte proeminência política no Brasil.

Na esfera eleitoral, a relevância das análises em termos do "voto evangélico" foi questionada. Embora a maioria dos evangélicos tenha votado em Bolsonaro, uma análise mais refinada da principal pesquisa eleitoral mostra que a polarização da sociedade brasileira se reflete menos no contraste de posições entre neopentecostais e católicos do que nos diferentes ramos do evangelicalismo e, em particular, entre os paroquianos das igrejas neopentecostais.

Na esfera política, a relevância da afiliação religiosa como categoria analítica central para a compreensão do impacto crescente dos atores religiosos conservadores foi questionada. Por trás do que muitas vezes é apresentado como uma luta entre católicos e evangélicos, está sendo travada uma batalha entre correntes conservadoras e progressistas que atravessam cada religião e suas diferentes igrejas.

Também vale a pena lembrar que a interpretação das Escrituras é um elemento fundamental para a compreensão desses atores. Nessa perspectiva, a mudança escatológica ocorrida em várias igrejas evangélicas brasileiras, que incentivou o compromisso político dos fiéis com a implementação de suas convicções, constitui um fator-chave na ascensão política de atores religiosos conservadores.

Por fim, a consolidação dos atores religiosos reacionários na arena política durante as presidências do Partido dos Trabalhadores desafia a oposição radical entre os atores religiosos conservadores e os governos progressistas e representa uma lição política para os governos progressistas. Os presidentes Lula e Dilma Rousseff firmaram parcerias com atores religiosos reacionários para realizar seus programas sociais. Eles abriram espaços para eles como protagonistas nas arenas social, política e midiática, a ponto de a consolidação dos atores religiosos conservadores como um dos principais atores na política e na sociedade brasileira continuar sendo um legado das presidências do Partido dos Trabalhadores. Os atores conservadores aproveitaram cada espaço e cada oportunidade política para divulgar sua agenda moral e política, consolidando sua influência e proeminência com um sucesso que poucos previram.

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Geoffrey Pleyers é pesquisador do fnrs e professor de sociologia na Universidade Católica de Leuven, onde é chefe do grupo de pesquisa smag - Social Movements in the Global Era e o grupo de pesquisa interdisciplinar sobre a América Latina (Graal). Ele é vice-presidente de pesquisa da International Sociological Association. Suas principais publicações incluem os livros Alter-Globalização. Tornando-se atores na era global (Cambridge, Polity Press, 2011) e Movimentos sociais no século XXI xxi (Buenos Aires, clacso, 2018) e artigos como "A guerra dos deuses no Brasil. Da teologia da libertação à eleição de Bolsonaro" (Educação e sociedade, 2020) e "A pandemia é um campo de batalha. Movimentos sociais durante a covid-19 lockdown" (Revista da Sociedade Civil, 2020). Ele coordenou quinze livros ou edições de periódicos, incluindo, com Breno Bringel, Alerta Global. Política e movimentos em face da pandemia (clacso, 2020).

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