Continuando a conversa: antropologias da gestão, poderes tutelares e horizontalidade. Uma entrevista com Negra (María Gabriela) Lugones

Recepção: 01 de março de 2023

Aceitação: 27 de abril de 2023

https://youtu.be/yGbfTX0Npg4

A conversa contínua é um dos gêneros discursivos mais antigos e talvez o mais necessário. Paul Ricoeur chamou de "terceira mimese" a esse mecanismo dialógico, intermitente, em elipse e escândalo, restaurado pela ironia ou pelo afeto: a conversa contínua com alguém como um dispositivo que refigura o que é dito e evita a cristalização, e uma "interseção" entre o mundo do texto e o mundo do leitor ou ouvinte. Essa mimese evita o ponto final como uma fixação de significado, seja no meio (um papel, uma tabula, hoje um podcast) ou na poética (a monoglossia, a ditado). Acho que esse exercício de entrevista com Negra Lugones é uma modulação desse gênero: uma conversa inacabada, em disputa e, como o próprio Ricoeur disse, um convite, uma convocação para outros (Ricoeur, 2004: 139-144).

La Negra Lugones (María Gabriela, emulando Alma Maritano quando diz que é o primeiro nome que vai entre parênteses se o apelido é o que faz "o outro aparecer") é professora de História na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina; e mestre e doutora em Antropologia Social no Museu Nacional do Rio de Janeiro, Brasil. É pesquisadora da Área de Ciências Sociais do Centro de Pesquisas da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, bem como professora de Antropologia Cultural da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Ela também faz parte do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento. (atado), que reúne pesquisas interdisciplinares com vários grupos sociais e mecanismos estatais em contextos urbanos e rurais em nossa região.

A entrevista que compartilhamos em Encartes foi realizada em 25 de fevereiro de 2023, no âmbito da visita de Lugones a Guadalajara como um membro sênior do Centro Maria Sibylla Merian de Estudos Avançados Latino-Americanos (enseadas), com o projeto "Horizontalização dos Poderes Judiciais. Formação de agentes de administração judicial na Argentina atual".. A conversa foi realizada em Coyoacán, Cidade do México, em minha casa (menciono isso porque acho que não damos espaço suficiente para pensar em lugares íntimos e cotidianos como catalisadores de pensamento e diálogo). Além das linhas curriculares detalhadas, parece-me importante fazer algumas observações sobre La Negra, que conheci em 1996, quando ambos estávamos no segundo ano de História em Córdoba, e ali começou uma amizade que é um dos presentes mais preciosos da vida e que me acompanha até hoje.

Leitora curiosa e imparável, ela nasceu em Santiago del Estero, a província argentina onde, segundo o cantor e compositor Alfredo Zitarrosa, "começa a América Latina". Uma paisagem dissonante em relação ao que qualquer mexicano poderia imaginar sobre "o que é a Argentina": nem o Rio da Prata, nem as planícies férteis, nem as vastas extensões dos Pampas, nem aquela mônada exaustiva e estereotipada sobre o país onde "todos descemos dos barcos". Muitas vezes ouvi La Negra dizer "no México me sinto em casa". Casa, eu sei, significa Santiago: os rostos familiares, o andar do corpo, a cadência da fala. Também as marcas da pobreza estrutural e do racismo.

Santiago del Estero tem uma população indígena e descendente de indígenas significativa, com uma variante do quíchua, o "quíchua santiagueño", falado atualmente por mais de 150.000 pessoas. Santiago também conta com um movimento camponês contra a desapropriação que ainda está ativo e com a presença de intelectuais do porte de Bernardo Canal Feijoo, que olhou para todo o país com olhos excepcionais a partir do interior. Isso não é uma enumeração de características, mas uma maneira de afirmar que a palavra de María Gabriela Lugones desperta esse primeiro olhar. La Negra analisa a política, a gestão, os formatos de interação, as modulações da subjetividade com aquela paisagem original como contraponto, como baquelite tensa em cujo pêndulo ela pensa.

Lugones estudou direito em Córdoba por alguns anos e depois história como graduação. Seus estudos de pós-graduação no Brasil - e seu constante retorno a esse país - a marcaram profundamente. Não só pela estupenda linha da Antropologia Social brasileira que a formou nessa escola de etnografia que é o Museu Nacional - herdeiro da melhor tradição weberiana e levistraussiana com suas múltiplas derivações e atualizações -, mas também pela dívida ética e responsavelmente adquirida (e me reconheço nisso) com os países do Sul que se comprometem com a formação de pesquisadores de excelência, não só nacionais, com políticas de bolsas de estudo e educação gratuita. Essa é uma marca que, pelo menos na América Latina, só é mantida pelo México e pelo Brasil (exceto pelo obscuro parêntese bolsonarista): marcar como política de Estado não só a formação gratuita, mas também remunerada de pesquisadores em Ciências Sociais e Humanas.

Desde 2002, e já no Museu, a presença de Antonio Carlos de Souza Lima tem sido parte integrante da vida de Lugones. Souza Lima, autor da obra magistral que é Uma grande sebe de paz (1995) - e esperamos que agora que foi traduzido para o espanhol seja mais lido no México - deu a La Negra seu primeiro contato com a noção de "poder tutelar" e com uma série de investigações dirigidas por Antonio sobre populações que merecem proteção (no passado e no presente) e sobre a fórmula "gestar y gestionar", criar e administrar. Seu primeiro livro, resultado de sua tese de doutorado, homenageia esse espaço colegiado de geração de pesquisas com forte densidade empírica, intitulado Trabalhando no caso, trabalhando nas vidas: formas e fórmulas de proteção judicial nos Tribunais Preventivos Juvenis de Córdoba, Argentina, no início do século. xxi (Lugones, 2012).

Com base em pesquisas etnográficas e a partir desse espaço de formação, Negra se move na órbita de uma "antropologia da gestão", que aborda formas de gestão que enfatizam a conjunção entre administração e pedagogia, em exercícios governamentais que produzem conhecimento e especialistas em diferentes escalas institucionais. Com base nessa linha de pesquisa, desenvolvida em diferentes projetos desde 2000, ele está interessado em descrever a produção de subjetividades em correlação com formas de sujeição do Estado, por meio do estudo de ações administrativo-judiciais, ações governamentais e performances Estado nas (e das) instâncias municipais, provinciais e nacionais. Essas investigações envolvem a observação e a exploração das ações cotidianas de agentes e agências estatais e suas contínuas (re)produções simbólicas, bem como exercícios de gerenciamento de determinados segmentos populacionais, consagrados política, social e juridicamente como merecedores de proteção.

Mas também acredito que é necessário ir além das listas curriculares e das exposições clichês. Desde que a conheço, Negra tem se caracterizado por uma perspicácia única, uma curiosidade insaciável pela leitura e uma clareza política que impressiona. Durante meus anos de universidade, era um prazer para todos ouvi-la falar: não me lembro de outros colegas de classe com aquela "conexão imaginária" que Negra tem, aquela capacidade instantânea de atualizar leituras, de ler uma imagem e trazê-la para o momento, de propor uma visão que ninguém mais havia dado sobre qualquer evento que estivesse sendo discutido: e era a visão que estava faltando. Mas o que é maravilhoso em María, o que provavelmente marca sua paixão pela etnografia, é sua capacidade de "estar" em lugares tão opostos e, de alguma forma, ser sempre ela mesma: com a senhora que vende empanadas de charqui em Santiago, com Dona Paula que serve quesadillas na barraca de uma escola pública em Coyoacán, com uma magistrada mexicana em seu escritório. La Negra sempre faz da vida cotidiana uma combinação única de prazer e reflexão. Ela se especializou em ver essa paisagem condensada de formatos cotidianos de interação e as maneiras pelas quais opera uma forma de poder que é criada por ela mesma nesse ato preciso de fala e sua desempenho. Ele está interessado em como o estado existe em sua letra maiúscula somente por meio dos atos de investidura que o tornam possível (e potente) em ações precisas, às vezes mínimas.

É por tudo isso que, neste espaço de conversa e entrevista que apresentamos, revisitamos o passado, os caminhos escolhidos e os que se abriram, e Negra modula questões que vem traduzindo em preocupações de pesquisa para si e, sobretudo, com seus "orientandos e orientandas", como se diz no Brasil: acima de tudo, ela é uma grande leitora e "detectora" de potencial de pesquisa, bem como formadora de autores e vocações autorais. Em termos mais concisos, esta gravação é uma "continuação da conversa" em meio à tão esperada viagem ao México com Federico, seu companheiro de vida, e Alma, sua linda filha, uma viagem que combinou antigas preocupações com um novo projeto de pesquisa sobre produções horizontais de conhecimento em relação aos poderes judiciais. Um enorme desafio se pensarmos no "sigilo" quase místico que cerca nosso aparato judicial. É nesse núcleo duro que Lugones desafia as premissas de administração, dominação, formatos de interação e "rubricas" do Estado.

No entanto, suas intuições profundas, suas apostas em termos de questões honestas e inacabadas, falam não apenas da construção de um "campo acadêmico", mas de uma maneira de habitar o exercício do pensamento de uma forma alternativa, lateral, eu diria, a toda a parafernália das exigências de publicação fragmentada, resultados rápidos e marcadores de impacto. La Negra não concebe o que tem sido chamado de "funções substantivas" de uma universidade (ensino, pesquisa, extensão, preservação e disseminação da cultura) como práticas separadas. Em vez disso, é um exercício de artesanato que projeta perfeitamente um programa de ensino de graduação, em conjunto com seminários de pós-graduação, e ao mesmo tempo carrega as questões de um projeto de extensão como categorias analíticas de um programa de pesquisa. Essa postura fala de outra maneira de conceber a tarefa de dialogar e escrever, de "pensar" em termos arendtianos: sem ceder à condescendência, à "moda" ou ao álibi de conceitos genéricos. Um convite que espero que você seja convidado a aceitar.

Nota beneA entrevista foi realizada na noite de sábado, 25 de fevereiro, mês de Nossa Senhora de Lourdes no calendário católico, que foi celebrado no início daquele dia com fogos de artifício e dança no Quadrante de São Francisco, Coyoacán, Cidade do México. As explosões e parte da música podem ser ouvidas na gravação. O fato de os rituais de amizade, conversa e celebração terem sido combinados ali também nos pareceu um presente.

Bibliografia

Ricoeur, Paul (2004). Tiempo y narración, t. I: Configuración del tiempo en el relato histórico. Madrid: Siglo xxi [1985].

De Souza Lima, Antonio Carlos (1995). Um grande cerco de paz. Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes [hay una versión en español: Un gran cerco de paz. Poder tutelar, indianidad y formación del Estado en Brasil. México: Ediciones de la Casa Chata, ciesas, 2016].

Lugones, María Gabriela (2012). Obrando en autos, obrando en vidas: formas y fórmulas de Protección Judicial en los Tribunales Prevencionales de Menores de Córdoba, Argentina, a comienzos del siglo xxi. Río de Janeiro: E-Papers/Museu Nacional.


Mario Rufer é professor-pesquisador da Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, México, onde leciona estudos culturais e crítica pós-colonial. Ele é membro do Sistema Nacional de Pesquisadores do Conacyt.. Ela pesquisa narrativas de temporalidade, memória pública, museus e arquivos. Publicou recentemente: Pesquisa indisciplinar. Trabalho de campo, arquivamento e redaçãoeditado em conjunto com Frida Gobach (Siglo xxi/uam, 2017); Horizontalidade. Uma crítica da metodologiaeditado em conjunto com Inés Cornejo (calas/clacso, 2020); y Colonialidade e seus nomes (Century xxi/clacso, 2022).

María Gabriela Lugones é professora pesquisadora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Possui mestrado e doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, Brasil. Desde 1999, trabalha com documentário etnográfico e pesquisa de campo sobre formas de administração da proteção estatal de crianças, adolescentes e mulheres. Juntamente com Gustavo Blázquez, dirige o programa de pesquisa Subjetividades y Sujeciones Contemporáneas, ligado à Secretaria de Ciência e Tecnologia da Universidade de Córdoba. Ela é autora de Trabalhando no caso, trabalhando nas vidas. Formas e fórmulas de proteção judicial nos Tribunais Preventivos Juvenis de Córdoba, Argentina, no início do século. xxi. Río de Janeiro: E-Papers/Museu Nacional.

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