Recebido em: 12 de dezembro de 2018
Aceitação: 20 de dezembro de 2018
M pais que procuram rastros de seus filhos em terrenos baldios. Jornalistas que têm pesadelos em que são executados por armas de alta potência. Jovens que testemunham pelo reconhecimento de desaparecimentos forçados no México perante atores internacionais. Ativistas de direitos humanos que acompanham as vítimas invisíveis da chamada guerra às drogas, ou seja, pessoas deslocadas. Esses temas compõem os quatro textos deste dossiê, que foram escritos por mulheres que transitam entre a academia e o ativismo. Eles expõem a desumanização do discurso e da ação militarista, iluminam os significados daqueles que sofrem e resistem a essas circunstâncias e destacam a maneira cruel com que a sociedade mexicana foi atingida pela militarização da segurança pública.
Por meio de estudos de caso, realizados principalmente no norte do país e um na capital, ele analisa a atuação das vítimas que, em colaboração com organizações da sociedade civil e acadêmicos, agem para reparar violações de direitos humanos: desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais, ataques à liberdade de expressão e deslocamento forçado.
Enquanto algumas vítimas buscam a verdade, ou seja, a localização de seus "tesouros", outras lutam pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado mexicano perante atores internacionais e por uma justiça improvável. A fuga e o deslocamento também são formas de resistência, especialmente quando confrontados com o medo da vitimização. Enquanto isso, permanece a esperança de retornar à sua terra natal e trabalhar para garantir a não repetição. Esse é o caso dos jornalistas deslocados, que só recentemente se organizaram em um grupo.1
Os quatro artigos que compõem este dossiê são enfáticos ao apontar o custo humanitário da mal chamada guerra às drogas, uma guerra não convencional que está inscrita no registro da novas guerras (Kaldor, 2001), em que as lutas armadas ocorrem dentro dos próprios Estados devido à sua incapacidade de lidar com o colapso social; guerras em que exércitos não regulares são frequentemente colocados uns contra os outros. Mbembe (2012), citado por Robledo nesta edição, destaca o caráter global das novas guerras que expressam: 1) uma relação cada vez mais estreita entre política e guerra, o que implica uma profunda identificação entre liberdades políticas e segurança; 2) uma dramática incerteza sobre quem é o inimigo e a existência de uma série de tecnologias e dispositivos para identificá-lo; 3) um caráter assimétrico no exercício do poder de guerra, que é exercido sobretudo contra a sociedade civil; 4) a multiplicação tecnológica da capacidade de destruição; 5) o caráter estrutural dessas guerras, que buscam destruir as condições básicas das sociedades contra as quais são dirigidas; 6) a proliferação de guerreiros agindo no interesse do mercado; e 7) uma guerra que é travada não apenas contra os corpos, mas também contra a natureza.
No México, as Operações Conjuntas realizadas em determinadas regiões, como estratégia governamental para enfrentar o inimigo conhecido como "narcotráfico" e posteriormente renomeado como "crime organizado", envolveram a mobilização das forças armadas nacionais. Isso, como aponta May-ek Querales, "levou a sérios conflitos nas regiões onde foi implementado, pois resultou na presença de três atores armados nos territórios: as forças policiais (federal, estadual e municipal), o exército e/ou a marinha e o crime organizado".
Brenda Pérez e Montserrat Castillo, ativistas da Comissão Mexicana de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CMDPDH), detalham o custo humanitário dessa estratégia militarizada, que aumentou exponencialmente a violência direta contra a população civil. A partir de 2006, o México sofreu uma avalanche de homicídios, execuções extrajudiciais e desaparecimentos, todas graves violações de direitos humanos descritas em detalhes pelos autores acima mencionados. A imprensa não foi poupada. A esse respeito, Séverine Durin faz um relato das formas letais de coerção usadas contra a mídia no nordeste. Com base em vários casos, a autora relata a violência a que os jornalistas foram submetidos: ameaças de morte, assassinatos, desaparecimentos e ataques com armas de alto poder de fogo contra os prédios da imprensa regional. A guerra, como demonstra Durin, também ocorreu na esfera das comunicações e colocou os jornalistas na linha de fogo, de tal forma que os atores armados em conflito procuraram controlar a linha editorial da mídia; o Estado o fez assinando acordos com a mídia em 2011 (Eiss, 2014), enquanto os atores armados ilegais os coagiram a esconder baixas entre suas tropas ou a comunicar ações cruéis por meio de estações de televisão e semear o terror entre a população.
Como resultado dessas violações de direitos humanos e da violência criminosa, o México experimentou uma nova onda de migrações forçadas, algumas internas e não reconhecidas pelo Estado, chegando a 329.917 pessoas deslocadas em dezembro de 2017, de acordo com o monitoramento do CMDPDH; outras no exterior, especialmente no Texas, onde ativistas, jornalistas e pessoas deslocadas do Vale Juárez se reuniram em torno da figura de seu advogado e criaram o Mexicans in Exile (consulte Querales).
Outras vítimas, que se sentem "mortas em vida", vasculham cuidadosamente os terrenos onde seus entes queridos poderiam ter sido enterrados por aqueles que queriam apagar a evidência de seu crime e, assim, semear a ansiedade entre a população. Desaparecer o corpo de uma pessoa, sem permitir que seus parentes a enterrem, faz parte da pedagogia da crueldade que os atores armados, legais e ilegais, infligem à população civil, como Robledo corretamente aponta: "O México testemunhou a extensão do espetáculo do sofrimento e da crueldade, por meio da encenação de várias formas de violência extrema" (Nahoum-Grappe, 2002). Talvez o esforço mais perverso, e o mais procurado por seus perpetradores, seja o destacado por Querales, para quem os desaparecimentos forçados, as execuções em vias públicas, as execuções extrajudiciais, as faixas e ameaças escritas em vias públicas e os corpos vexados e exibidos em rotas cotidianas são usados para desarticular os sentidos comunitários e silenciar as comunidades.
Na perspectiva de Johan Galtung (1990), a violência direta, que assume a forma de homicídios, desaparecimentos e deslocamentos forçados, só pode ser compreendida em sua relação com a violência estrutural e a violência cultural, ou seja, os elementos culturais e simbólicos que justificam a violência estrutural e mantêm os setores da população excluídos dos benefícios dos bens comuns. Então, quais foram os elementos culturais, simbólicos e ideológicos que legitimaram o uso da violência direta? E de que forma isso também levou a uma maior violência estrutural?
Como já expliquei em outro lugar (Durin, 2018), a construção da figura do "narcotraficante" como um inimigo interno a ser derrotado pelos militares ocorreu no final de 2006. Isso se cruza com representações negativas de homens jovens de origem popular, e não é insignificante o fato de que "centenas de homens e mulheres jovens tiveram sua dignidade negada" ao desaparecerem (Robledo) e que os homicídios aumentaram entre os jovens entre 15 e 29 anos de idade nessa época. Esse fenômeno, que tem sido descrito como juvenicídio (Valenzuela, 2015), é uma evidência do reforço da violência estrutural contra o setor da juventude, especialmente contra homens de baixa renda.
Tabela 1: Homicídios na população de 15 a 29 anos no México (1990-2017)
Por sua vez, o medo das classes dominantes em relação aos setores populares, que foi ativado durante a campanha eleitoral de 2006, transmutou-se em medo dos "narcos" durante a temporada pós-eleitoral, quando o presidente eleito concordou com as autoridades norte-americanas em uma estratégia de segurança binacional chamada Iniciativa Mérida, semelhante ao Plano Colômbia (1999-2005), que não apenas implicava uma estratégia antidrogas, mas também favorecia o investimento estrangeiro em setores estratégicos, assessoria técnica para reformas legais e incentivos fiscais (Paley, 2012).
Esse mecanismo de construção de inimigos internos, que servem como bodes expiatórios, é um recurso ideológico que Jacques Sémelin (2013) observou nas lógicas que levaram à perpetração de massacres na Alemanha nazista, na Bósnia e em Ruanda. Elas exigem líderes políticos capazes de ativar sentimentos nacionalistas, baseados no desejo de restaurar a grandeza perdida da nação e na identificação dos responsáveis pela derrota que devem ser destruídos. Em nosso caso, a alteridade do "narcotráfico" foi erigida como o que deve ser derrotado, até a morte, se necessário. De acordo com essa retórica, em janeiro de 2007, o presidente Felipe Calderón apareceu em trajes militares em Apatzingán, Michoacán, onde declarou às forças armadas que "venho hoje como comandante supremo para reconhecer seu trabalho, para exortá-los a continuar com firmeza e dedicação e para dizer-lhes que estamos com vocês" (La Jornada(3 de janeiro de 2007). Isso se deve ao fato de que "seu governo está determinado a restaurar a paz, não apenas nesses estados, mas em todas as regiões do México que estão ameaçadas pelo crime organizado. Embora ele tenha reiterado que a luta não é uma tarefa fácil, nem será rápida, pois levará muito tempo e envolverá enormes recursos dos mexicanos, inclusive a perda de vidas" (idem).
Essa estratégia, que custou milhares de vidas, baseou-se na estigmatização e na perseguição de um setor da população, mas não no uso de uma estratégia judicial para desmantelar as empresas transnacionais que, com a cumplicidade das autoridades, estavam envolvidas na plantação e no tráfico de drogas. Além disso, a estrutura nacionalista do discurso não permitia que se levantassem vozes contra ele, pois isso era se comportar como um traidor, e expunha os cidadãos ao horror da violência armada em suas esferas da vida. As práticas de terror dos atores armados em guerra foram utilizadas contra a população, afetando especialmente ativistas, jornalistas e líderes comunitários (consulte Querales, Durin e Pérez y Castillo). Isso contribuiu para o desmantelamento da cidadania e, como argumentam Pérez e Castillo, o medo da estigmatização e da criminalização foi um fator poderoso contra a organização de pessoas deslocadas, de modo que essas vítimas da guerra às drogas se tornaram invisíveis.
Apesar da extrema violência, do terror, da impunidade e da desumanização encarnados na figura daquele que assassina sem piedade ou esquarteja e joga corpos na via pública como parte de uma gramática de violência que põe fim à condição humana (Reguillo, 2012), os cidadãos vitimados agiram, como os textos que compõem este dossiê.
As ações em prol da verdade e da justiça diante da violência estatal e criminal são formas de resistir à desumanização (Levi, 1987) que resulta das formas cruéis de privação da vida e da ocultação das violações perpetradas pelos agentes estatais e não estatais responsáveis. O ato de nomear carinhosamente aqueles que se busca, de se referir a eles como seus "tesouros", em contraste com a terminologia forense e científica que prefere "restos", ilumina a dimensão humana de suas ações. Os rastreadores de El Fuente, em Sinaloa, ou as pessoas que participam das brigadas de busca em Veracruz ou Guerrero, diante da inação do Estado e do regime de impunidade e não-verdade, se organizam para descobrir o que aconteceu com seus parentes e para buscar identificação e restituição a partir de uma abordagem humanitária. Sua estratégia, que difere da de outros coletivos e organizações de direitos humanos, abandona todas as exigências de justiça e a designação de culpados, a fim de evitar a perseguição das autoridades e obter sua colaboração nas tarefas de identificação, que atualmente apresentam enormes desafios. Por meio de buscas de cidadãos, eles experimentam a capacidade restauradora do ato que reumaniza ao recriar laços sociais e constrói uma comunidade emocional de vítimas e aliados (consulte Robledo).
Essa reconexão comunitária também ocorre entre as vítimas exiladas em El Paso, originárias do Vale de Juárez e agora membros da Mexicanos no Exílio, que encontram na organização uma maneira de alcançar uma reconexão subjetiva ao narrar suas experiências traumáticas e transformá-las em sofrimento, por meio do diálogo intersubjetivo estabelecido em terapias, cartas escritas e atos de protesto. Além de participar das reuniões mensais dos membros da organização, a reconexão comunitária opera colaborando com organizações de direitos humanos, localizadas na cidade fronteiriça de Juárez, e direcionando eventos para a sociedade civil dos EUA (peças de teatro, protestos, coletivas de imprensa) para divulgar as violações dos direitos humanos no México. Assim, a partir das margens do estado nacional, eles se dirigem a diversos públicos para exigir o reconhecimento da situação em seu país e para exigir justiça (consulte Querales).
No entanto, nem todas as vítimas se unem em torno de um objetivo comum e, no caso de pessoas deslocadas (consulte Durin, Pérez e Castillo), o primeiro impulso é salvar a própria vida e não dá lugar a encontros com pessoas de igual status, especialmente quando os deslocamentos são individuais ou familiares, como foi o caso dos jornalistas entrevistados por Durin. Além disso, a coerção a que estavam expostos só foi percebida tardiamente por seus colegas no centro do país, onde se localizam as organizações de jornalistas, e demorou alguns anos até que fossem oferecidos treinamentos e criadas redes de jornalistas no nordeste, lançando assim as bases para uma associação jornalística mais solidária nessa região do país. É importante observar que a criação da FEADLE,2 bem como o Mecanismo de Proteção para Jornalistas e Defensores de Direitos Humanos do Ministério do Interior, além de serem posteriores aos fatos de vitimização sofridos pelos jornalistas, não conseguiram remediar a impunidade em que se encontram os ataques contra a imprensa, de modo que o México continua sendo um país muito perigoso para o exercício do jornalismo.3
Nesse sentido, as organizações de direitos humanos desempenham um papel fundamental para dar visibilidade ao deslocamento forçado, especialmente o CMDPDDH, que, em 2014, criou um departamento dedicado à questão para documentar os casos e combater a narrativa oficial que nega a existência do fenômeno, apesar das evidências apresentadas pela Comissão Nacional de Direitos Humanos (2016). O trabalho de documentar sistematicamente os casos de deslocamento, juntamente com o monitoramento da imprensa, dá conta da magnitude do fenômeno e permite que eles criem informações confiáveis, enquanto preparam litígios estratégicos e recorrem a órgãos internacionais de direitos humanos.
Como reflexão final, os textos foram escritos a partir de diferentes posições, de organizações de direitos humanos, como o CMDPDH, do meio acadêmico e em colaboração com coletivos e organizações de vítimas. O texto de Robledo destaca a importância de desconstruir o conhecimento científico e estar atento ao conhecimento das pessoas, das vítimas e de suas expectativas, diante de uma ciência forense que dita procedimentos, mas também uma ciência na qual a testemunha perita pode apoiar as demandas das vítimas.
Inevitavelmente, surgem tensões na relação que as vítimas tecem com outros atores, às vezes aliados, às vezes não, que são os acadêmicos, as burocracias estatais - que tendem a não agir e revitimizar, mas têm os meios para identificar os "tesouros" encontrados nas buscas dos cidadãos - e as organizações de direitos humanos, que lutam por uma nova legislação, embora sigam o que está em vigor. De uma perspectiva antropológica, é importante lembrar a importância de colocar a dignidade das pessoas com quem trabalhamos no centro e também estar ciente de nossos próprios desafios em termos de cuidado com nossas vidas. Hoje, é essencial trabalhar em rede para agir com segurança a partir das trincheiras acadêmicas.
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