A antropologia diante dos contadores de histórias da globalização

    Recebido em: 2 de março de 2017

    Aceitação: 10 de março de 2017

    Etexto de Gustavo Lins Ribeiro levanta questões fundamentais para repensar a situação atual da antropologia. Seu panorama histórico mostra que poucas características fundacionais perseveram porque o mundo sofreu mutações desde o século XIX e a primeira metade do século XX. Uma característica que definiu o passado - "compreender as estruturas da alteridade" - fica embaçada quando reconhecemos que a antropologia não pode mais ser "a cosmopolítica do Ocidente", nem "a celebração do poder do homem branco".

    O deslocamento do conhecimento antropológico no processo de globalização, que tornou interdependente a maioria das nações e grupos étnicos, é uma das razões pelas quais a antropologia, como conhecimento dedicado ao local, perdeu relevância nas últimas décadas. Lins Ribeiro menciona, com razão, outras razões: a concorrência com outras disciplinas, a hiperespecialização, as mudanças na relação cultura/natureza, o anti-intelectualismo (em parte devido ao "império das telas" e à vertigem informacional provocada pela internet). O texto aponta para algumas das falhas da própria antropologia: "a cultura da auditoria e do produtivismo" associada ao modelo de negócios com o qual a vida acadêmica é reorganizada, bem como "a ausência de professores" nos debates públicos.

    Gostaria de ampliar o repertório de mudanças globais que alteram o papel da antropologia e explicar por que e como alguns antropólogos veem nessas transformações oportunidades para reconfigurar nossa disciplina. Também é necessário apontar os desafios teóricos e epistemológicos que enfrentamos, não apenas para desocidentalizar, mas também para descrever essa era de interdependência globalizada em que não há mais nenhuma narrativa abrangente. Deixe-me colocar a questão da seguinte forma: como podemos colocar no centro da disciplina não a cultura e a alteridade, mas a interculturalidade das sociedades e as narrativas da vida social que são difíceis de conciliar?

    Concordo com Lins Ribeiro que estamos vivendo em uma era pós-multiculturalista. Mas apenas no conhecimento antropológico e nas práticas de algumas organizações, como certas ONGs. O multiculturalismo prevalece nas políticas nacionais e nas de instituições internacionais. Nas áreas mais sensíveis à chamada universalidade do humano, continua a imperar o pluralismo democrático ou "a ideologia anglo-saxônica de gestão de conflitos interétnicos": segregando grupos étnicos em bairros distintos, promovendo a tolerância, moderando - apenas moderando - os efeitos desigualadores das diferenças, por exemplo, por meio de cotas, sem assumir os desafios da crescente convivência intercultural.

    Por outro lado, há o multiculturalismo agressivo. Hesito em chamá-lo de multiculturalismo porque no Brexit, no Trumpismo, no racismo europeu e em outros racismos de direita, o nacionalismo domina; mas talvez todos os multiculturalistas tenham em comum a ideia de que a coexistência com aqueles que são diferentes exige aliená-los, com o mínimo de direitos possível. Em suas versões mais exasperadas, eles buscam a anulação dos outros: muçulmanos, judeus, palestinos, africanos, latinos. O lado luz desses multiculturalismos nacionalistas admite a existência daqueles que são diferentes, desde que estejam separados por um muro, uma distância sanitária.

    A coexistência desses e de outros grupos humanos, devido às migrações, ao turismo e à industrialização transnacionalizada da cultura, invalidou as narrativas predominantes do século XX. Devemos partir da evidência de que não há a teoria da interculturalidade nem a ética capaz de administrar com consenso as múltiplas formas de organizar a vida familiar, a sexualidade, o trabalho e o comércio, o conhecimento sobre educação ou saúde e muitas outras áreas da vida social.

    Novos narradores da universalidade

    Duas narrativas dos últimos anos propõem modos de integração transcultural com vocação global: o pós-colonialismo e a racionalidade tecno-social. Vou analisá-las brevemente a fim de explorar qual pode ser o papel da antropologia em relação a seus modelos de resolução de conflitos interculturais.

    1. As pós-colonialismo é uma narrativa que tenta funcionar como uma teoria da globalização. Nascida nos países descolonizados da Ásia e da África na segunda metade do século XX, ela contribui para superar a vaga noção de Terceiro Mundo ao descrever as condições coloniais dessas sociedades, sua persistência nos discursos pós-emancipação e postular uma mudança epistemológica para redefinir a subalternidade. Duas críticas feitas ao pensamento pós-colonial mostram as limitações de seu empreendimento: a) Sendo construído por intelectuais de origem oriental que produzem em universidades ocidentais, onde participam da virada linguística pós-moderna nas ciências humanas, seus trabalhos se concentram na linguagem e nas representações, e não nas condições materiais e sociais da existência; b) Suas análises se concentram nas diferenças interculturais e dão pouco espaço às contradições do capitalismo e à orientação neoliberal da globalização (Dirlik, 2007; Aroch, 2015).

    Essas limitações já tornam problemática a transferência da teoria pós-colonial para a América Latina, onde desde a teoria da dependência até os estudos socioculturais que vinculam a produção simbólica às suas condições econômicas (Jesús Martín Barbero, Norbert Lechner e Boaventura de Sousa, entre outros) elaboraram estruturas conceituais que levam em conta nossas articulações peculiares entre o nacional e o estrangeiro, a economia neoliberal e os movimentos de resistência e alternativa, ou seja, as posições histórico-epistêmicas em que nossa modernidade conflituosa é debatida.

    A sofisticação da análise discursiva de Edward Said, Gayatri Spivak ou Anthony Appiah nos ajuda a reinterpretar os estudos clássicos dos historiadores latino-americanos da arte e da literatura. Mas não podemos, em países que deixaram de ser colônias há mais de dois séculos, reduzir nossa complexa interculturalidade e desigualdade aos legados coloniais. Esse legado colonial persiste, sem dúvida, no tratamento opressivo dos povos nativos e dos afro-americanos, mas as atuais contradições de nosso desenvolvimento vão além dessa chave interpretativa.

    Quando falo de marcos teóricos vinculados às condições particulares de nosso continente, estou pensando em conceitos como pós-imperialismo, transnacionalização, globalização a partir de baixo e divisão internacional do trabalho intelectual, que não são exclusivos de nossa região, nem nascem de tradições autóctones. Eles são construídos por pesquisadores como Federico Besserer, Gustavo Lins Ribeiro e George Yúdice, por exemplo, com base em pesquisas sobre os processos socioculturais latino-americanos e em diálogo crítico com especialistas de outros centros e periferias, inclusive pós-colonialistas.

    Não somos essencialmente pós-coloniais, porque nossa subordinação hoje não tem a estrutura da ocupação político-militar de nossos territórios. Alguns traços dos períodos em que isso ocorreu permanecem, misturados a outros do imperialismo clássico (dependência da economia dos EUA e troca desigual de matérias-primas por produtos manufaturados). Mas o que resta do colonialismo e do imperialismo está realocado em redes controladas por corporações transnacionais (desde as fábricas multilocalizadas de alimentos, roupas e carros até as onipresentes corporações de arte, mídia e digitais). Quando Said quis entender o papel das "formas culturais" na formação de "atitudes, referências e experiências imperiais", lembra Lins Ribeiro, ele escolheu o romance como seu objeto, como outros autores pós-coloniais (Ribeiro, 2003: 54). Agora, as formas culturais hegemônicas são aquelas produzidas globalmente pelo cinema, pela televisão e pelas corporações multimídia que gerenciam a web.

    Essa desnacionalização neoliberal, na qual as estruturas de dominação são borradas, não nos permite focar as sedes do poder apenas em impérios como os Estados Unidos ou o Reino Unido. A transterritorialidade das corporações tende a tornar os dominadores irresponsáveis. Sempre que queremos reclamar sobre os defeitos de um produto fabricado por uma transnacional, descobrimos que as corporações não têm proprietários claros ou endereços centrais. Quando nos dão um número de telefone, se ligarmos, somos informados de que as linhas estão ocupadas e nos pedem para esperar porque "sua ligação é muito importante para nós". Quem somos nós? Se obtivermos uma resposta e eles não atenderem, é impossível falar com o mesmo funcionário novamente. Só identificamos lojas de "redes", "sistemas" bancários, "servidores de Internet".

    Portanto, como Paulina Aroch enfatiza em sua crítica ao textualismo pós-colonial, precisamos de um conhecimento empírico da divisão internacional do trabalho material e simbólico que nos permita ver "por trás da linguagem" (Aroch, 2015: 27). Se quisermos responder à pergunta de Spivak, "o subalterno pode falar?", precisamos descobrir: o que está falando na globalização atual? Quem fala e de onde? Quem financia uma corporação eletrônica, um site, uma bienal de arte ou experiências políticas ou artísticas de participação social? Quais são hoje os ambientes históricos e os interesses daqueles que falam, produzem bens materiais e culturais, os fazem circular e se apropriam deles?

    Essas não são apenas questões teóricas. A possibilidade de entender as causas que desencadeiam os conflitos atuais e de poder intervir politicamente depende de sua resposta. Se a migração e as deportações, a localização territorial das corporações transnacionais e a construção do muro de separação do México e da América Latina estão no centro da política de direita dos EUA, é porque não se trata apenas de racismo discursivo, mas de intervir nas condições sociomateriais da divisão internacional do trabalho. O textualismo pós-colonial oferece poucos recursos intelectuais para agir sobre as dimensões socioeconômicas que mobilizam a direita ao orientar a crise do capitalismo a seu favor.

    2. A visão geopolítica da racionalidade tecno-social é por vezes associado ao neoliberalismo econômico, especialmente quando favorece a governança de elites tecnocráticas nacionais e organizações internacionais (FMI, Banco Mundial etc.). Sua incapacidade de gerenciar conflitos interculturais tem sido destacada por economistas (Krugman, Stiglitz, Wallerstein) e antropólogos (Lomnitz e o próprio Lins Ribeiro em outros textos).

    Essa forma de "organizar" as contradições da globalização é expressa em estratégias de guerra que estão substituindo os confrontos físicos entre exércitos por guerras cibernéticas. As mortes em massa estão sendo reduzidas a números, a devastação ecológica urbana, por exemplo, no Iraque e na Síria, são simplificadas em imagens triunfantes daqueles que bombardeiam sob o pretexto de ordenar o caos causado por terroristas de outras culturas e encenadas como um espetáculo de barbárie. Os cientistas sociais, que não têm permissão para ver o que está acontecendo com homens, mulheres e crianças, são parcialmente substituídos por alguns jornalistas investigativos. As consequências diárias aparecem, então, diferidas, nos milhões de migrantes que, sofrendo com o tráfico da máfia, tentam chegar à Europa ou naufragam no Mediterrâneo.

    Quero destacar aqui a versão suave, social e tecnologicamente progressiva da unificação do mundo patrocinada pela tecnosocialidade. Ela é frequentemente associada a usos recentes da noção de hibridização. Os fabricantes de carros híbridos, que combinam um motor a gasolina, um motor hidráulico e uma bomba de ar comprimido, esperam reduzir pela metade o consumo de fontes de energia poluentes. Os promotores da economia compartilhada, incentivados pela expansão da Uber, uma empresa de transporte sem carros, e da Airbnb, que organiza o turismo sem quartos, estão imaginando como estender esse modelo de economia de pessoal e de custos para serviços de limpeza, design gráfico e jurídicos: a combinação de softwareO futuro do trabalho, a Internet e as multidões facilitarão a automação e a redistribuição de milhões de microatividades em todo o mundo. O futuro do emprego parece ser um sistema híbrido que incluirá processos executados por computadores com tarefas executadas por humanos.

    Uma vertente sedutora dessa redução da complexidade transcultural é a esperança de que nossas diferentes formas de pensar e sentir, de produzir, consumir e tomar decisões se tornem uniformes ou, pelo menos, comparáveis à medida que forem convertidas em algoritmos. As variações entre as culturas e entre os sujeitos dentro das culturas se tornarão menos importantes à medida que as diferentes lógicas sociais forem traduzidas em códigos genéticos e eletrônicos: a biologia se fundirá com a história, prevê Yuval Noah Harari. Duvida que isso vá acontecer? Lembre-se, diz esse historiador, "que a maior parte do nosso planeta já é legalmente propriedade de entidades intersubjetivas não humanas, a saber, nações e empresas" (Harari, 2016: 355). Surgirão dificuldades técnicas e objeções políticas que retardarão a reorganização algorítmica do mundo, por exemplo, dos mercados de trabalho, onde muitos ofícios e profissões desaparecerão. Mas outras podem surgir, como a de "designer de mundos virtuais". Os seres humanos ainda podem ser necessários, mas não os indivíduos entendidos como seres autônomos, pois sabemos que eles são "coleções de mecanismos bioquímicos que são constantemente monitorados e guiados por uma rede de algoritmos eletrônicos" (Harari, 2016: 361).

    Dois comentários. A plausibilidade dessa utopia - que foi parcialmente realizada - relativiza o papel de liderança atribuído na modernidade aos estados-nação e aos sujeitos territoriais em geral. Ela exige que, em nossa pesquisa, prestemos muita atenção às entidades anônimas que acessam nossas comunicações, que sabem mais do que nós sobre como interagimos em escala local, nacional e global, como as informações são distribuídas e ocultadas. Elas estabelecem sistemas globalizados de comportamentos e iniciativas para mudá-los, geram novos modos de soberania, que experimentamos ao usar o Google, o Yahoo, o Waze e todos os seus irmãos, seus Big Brothers.

    A segunda pergunta é o que a antropologia pode fazer nesse novo cenário. Nossa primeira inclinação é provavelmente procurar diferenças culturais e subjetivas não capturadas pelos bancos de dados, cujas interações face a face permanecem indecifráveis para os algoritmos e continuarão a exigir etnografias qualitativas. Mas há mais. Se, como sugere Harari, nesse mundo pós-liberal em que as escolhas individuais desaparecerão, "algumas pessoas continuarão sendo indispensáveis e indecifráveis, mas constituirão uma elite pequena e privilegiada" (Harari, 2016: 318), há tarefas atraentes para os antropólogos.

    Acima de tudo, será necessário entender quais mutações do humano e do social engendrarão esse tipo de desigualdade - e não apenas a diferença - e como reduzir as novas lacunas entre uma classe alta e o restante. Essa nova desigualdade e sua promoção por uma direita que se apropria privilegiadamente do conhecimento é um incitamento para uma antropologia que veja seu campo não apenas na diferença, mas também na desigualdade, nas conexões e desconexões, que incorpore em seu horizonte o papel emancipatório das redes sociodigitais e a força submissa da hipervigilância que as acompanha.

    É fundamental distinguir entre processos de submissão e processos de agência (ou ineficácia de algoritmos). A pesquisadora Anita Williams Woolley pergunta: a tecnologia aumenta nossa capacidade de nos envolvermos com pessoas diversas, mas será que queremos fazê-lo? (Williams Woolley, 2016: 2-3). Em estudos que exploram essa contradição, diz-se que as equipes multiculturais de uma empresa criam uma inteligência coletiva mais produtiva, mais sensível a erros, do que os grupos em que não há divergência de hábitos e formas de pensar. Isso é muito bom. Mas as negociações lentas e frustrantes em órgãos internacionais dedicados à paz, aos direitos humanos e à regulamentação do comércio global não levantam dúvidas sobre a escala em que a colaboração coletiva informada por algoritmos pode ser ampliada? Em seu estudo sobre o Banco Mundial, Lins Ribeiro demonstrou que o Banco Mundial, apesar de empregar pessoas de mais de 130 países, limita seu cosmopolitismo por meio do poder homogeneizador do idioma (inglês), gerenciando a diversidade sob uma única ideologia de desenvolvimento e eliminando experiências de alteridade ao se vincular apenas a elites políticas e administrativas locais (Lins Ribeiro, 2003). O estudo sobre a Organização Mundial do Comércio conduzido por Marc Abélès descreve um desejo semelhante de homogeneização, mas a hegemonia dos países ricos é desestabilizada quando entra em tensão com os desequilíbrios da economia de mercado: a etnografia realizada durante três anos por pesquisadores da Argentina, Camarões, Canadá, China, Coreia, Estados Unidos e França revela a complexidade intercultural de sua diplomacia comercial, as divergências que persistem apesar dos jogos de transparência e sigilo. A etnografia revela o reverso dessa cenografia (Abélès et al. 2011).

    Nosso treinamento como antropólogos pode nos permitir compreender o que há na nova racionalidade tecno-social, nas palavras de Harari, de "religião de dados", a busca - além do Homo Sapiens- de um Homo Deus. Essa religião emergente, o "dataísmo", pressupõe que culturas diferentes são padrões diversos de fluxo de dados que podem ser analisados usando os mesmos conceitos e ferramentas (Harari, 2016: parte iii). Como os seres humanos são incapazes de lidar com esses imensos fluxos de dados, a tarefa deve ser deixada para os algoritmos eletrônicos. Há algum sentido em distinguir entre sistemas públicos e privados, democráticos e autoritários, quando a maioria dos eleitores não sabe o suficiente de biologia e cibernética para formar opiniões relevantes? Tampouco os governantes, que dependem de pesquisas e algoritmos, são capazes de resolver ou direcionar conflitos - portanto, a liberdade de informação não é concedida aos seres humanos, mas à liberdade de informação, pergunta Harari. Talvez estejamos em uma simples transferência de poder: assim como os capitalistas o atribuíram à mão invisível do mercado, os cientistas de dados acreditam na mão invisível do fluxo de dados. Como na crítica do poder supostamente abstrato e sábio do mercado - na qual aprendemos a descobrir o logos e, por trás do logos, as forças sociais que estão disfarçadas - a antropologia, atenta à diversidade de experiências, pode agora detectar que a vida não se reduz ao processamento de dados e à tomada de decisões.

    Ao mesmo tempo em que assumimos esses desafios incertos de novas formas de gerenciar uma interculturalidade apaziguada pela sociometria e pela biotecnologia, a geopolítica internacional se tornou uma interdependência de medos. Os outros com quem aspiramos aumentar o comércio, o turismo e os intercâmbios acadêmicos, de quem tomamos emprestado recursos musicais e médicos para ampliar nosso horizonte cultural, apresentam-se como referentes ameaçadores. Os intercâmbios são repletos de suspeitas. Junto com a interdependência, o nacionalismo, o etnocentrismo e as tentativas de separatismo regional estão aumentando.

    Cenas em que a antropologia é realocada

    Para que a pesquisa sobre esses processos não se limite a uma renovação do conhecimento antropológico dentro da academia, é necessário repensar sua inserção social. Como podemos repensar o papel dos cientistas sociais na política? Creio ser útil lembrar que o declínio da relevância e do prestígio da antropologia nos debates é uma condição geral de todas as ciências sociais e do trabalho intelectual em uma época em que os meios de comunicação de massa e, mais recentemente, as redes sociais desempenham um papel preponderante na formação e na obsolescência das agendas públicas. O ritmo vertiginoso de acumulação de confrontos e catástrofes, em que - sem que seus efeitos desapareçam - os desta semana substituem os da anterior, reduz o lugar da pesquisa de longo prazo e da reflexão substantiva. Como aponta o texto de Lins Ribeiro, o anti-intelectualismo dos políticos, da mídia e - como vimos - a tendência de esperar dos algoritmos todo o conhecimento necessário para tomar decisões, contribuem para essa vertigem.

    Portanto, uma outra tarefa da antropologia é entender, por exemplo, os novos processos de leitura, assimilação e esquecimento de dados nessa era em que lemos fragmentos. Os diagnósticos equivocados sobre a crise das editoras e livrarias, mal interpretados por pesquisas que confundiam o declínio dessas empresas com o desaparecimento do livro e da forma "profunda" de ler, estão sendo modificados por estudos etnográficos. Com base em uma observação aberta a mudanças, percebemos que as perguntas precisam ser alteradas: em vez de investigar quanto ler (no papel) descobrimos como é lido em papel e em diferentes tipos de telas, na escola e em casa, mas também no transporte, na rua, em e-mails e mensagens de texto, junto com imagens e música, individual e socialmente (o que explica o aumento do número de participantes em feiras de livros, enquanto livreiros e editores se angustiam) (García Canclini et al., 2015). Aponto esse exemplo como uma das muitas interações em que a antropologia está mostrando que pesquisas, estatísticas e algoritmos são insuficientes. À medida que as pesquisas pré-eleitorais fracassam na Argentina, nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Brexit, na Colômbia, na votação contra os acordos de paz, são reveladas diferenças qualitativas em comportamentos não capturáveis por métodos quantitativos.

    A antropologia está se tornando menos relevante ou pode continuar a ser relevante de outras maneiras? A última pode ser vista quando a visão antropológica renova instituições tradicionais como os museus. Nesses santuários de conservação e mercantilização do patrimônio e, portanto, do direito, do nativismo e do neoliberalismo, o interculturalismo antropológico e o pós-colonialismo estão alterando os critérios de avaliação. Eles expõem a parcialidade das noções de beleza e excepcionalidade consagradas pela unesco para decidir, a partir do etnocentrismo euro-americano, o que merece fazer parte do patrimônio da humanidade. Os antropólogos têm conseguido, em muitos museus de todos os continentes, ajudar o público a conhecer culturas diversas, multiplicando os pontos de vista, conhecendo os objetos e seus processos de apropriação. É uma questão de realocar as culturas artística, popular e midiática sem fazer distinções nítidas entre seus objetos, mas sim perceber as distinções entre elas como estratégias operacionais e encenações de curadores, vídeos e da web (Elhaik e Marcus, 2012; García Canclini, 2010). A noção conservacionista de patrimônio pode ser reformulada, de acordo com as linhas propostas por Howard Becker e Robert Faulkner, se concebermos os patrimônios como repertórios, da mesma forma que os músicos de jazz combinam conhecimentos parciais, melodias que alguns conhecem e outros não, para realizar atividades coletivas com significado, com um significado diferente do programa para o qual foram criados.

    Por fim, evoco a presença da antropologia médica e forense nas fronteiras mais dolorosas da repressão e da resistência: existe uma maneira mais radical de trabalhar com a identidade do que identificar os desaparecidos, devolver seus restos mortais às famílias e comunidades, desafiar o silêncio e a cumplicidade da polícia, das máfias, dos juízes e dos governos? Trabalho interdisciplinar, com arqueólogos, equipamentos de informática, patologistas, radiologistas e juristas. Cruzamento e colaboração com organizações comunitárias e instituições locais, nacionais e internacionais, direitos humanos e associações políticas. Relocação de dramas locais em redes internacionais de pesquisa e poder: antropólogos forenses trabalharam em 16 países da América Latina (da Argentina ao México), oito países africanos, sete países europeus (da Bósnia à Espanha), Oceania, Ásia e Oriente Médio. Eles traduzem suas descobertas em publicações científicas, relatórios e recomendações para organizações nacionais e internacionais. Em meio a diversas culturas, religiões e situações políticas, a partir dos buracos acumulados pelo apartheid A África do Sul, as ditaduras do Cone Sul, Ciudad Juárez e Ayotzinapa, até mesmo os sequestrados pelas FARC na Colômbia, fortaleceram grupos da sociedade civil ameaçados, às vezes restaurando a confiança nos governos e nos tribunais, legitimando testemunhas e fornecendo apoio psicológico às vítimas e suas famílias. Um modelo de trabalho científico que muitas vezes exige distanciamento dos sistemas políticos e médico-legais desacreditados e colaboração para que cada sociedade possa ver como reconstruí-los.

    Bibliografia

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