Recepção: 27 de agosto de 2024
Aceitação: 30 de outubro de 2024
Da religiosidade vivida à religiosidade de dobradiça. Experiências do sagrado no México contemporâneo.
Nahayeilli Juárez Huet, Renée de la Torre, Cristina Gutiérrez Zúñiga (coordenadoras)Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, 2023, Cidade do México, 809 pp.
Sou grato ao Programa de Bolsas de Pós-Doutorado do uname ao meu orientador, Dr. David de Ángel García, por seu apoio.
Da religiosidade vivida à religiosidade de dobradiça. Experiências do sagrado no México contemporâneo. Nahayeilli Juárez Huet, Renée de la Torre, Cristina Gutiérrez Zúñiga (coordenadoras). Cidade do México: Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, 2023, 809 pp. isbn: 978-607-486-677-3
No livro Da religiosidade vivida à religiosidade de baseA autora, a Ph.D. e as coordenadoras Nahayeilli Juárez, Renée de la Torre e Cristina Gutiérrez compartilham conosco uma pesquisa de longo alcance - de âmbito nacional e dimensão plural - sobre a subjetividade da vida religiosa e sua diversidade no México contemporâneo, na qual elementos quantitativos e métodos qualitativos são usados para fornecer uma análise poderosa para entender a pluralidade religiosa por meio de dois conceitos e metodologias fundamentais: religiosidade vivida e religiosidade de charneira. Esses conceitos também são aplicados e analisados por 21 pesquisadores com experiência em diferentes religiões, cujo trabalho, juntamente com o dos coordenadores, compõe o corpo do livro.
O livro como um todo desafia o leitor de várias maneiras, desde a esfera existencial (que considera a homo religiosus O primeiro é como pesquisadores no que diz respeito às suas próprias metodologias, às formas como se relacionam com seus interlocutores e à sua voz no trabalho etnográfico; e o segundo é como uma proposta relevante nos estudos religiosos - principalmente sociológicos e antropológicos - que traz para a mesa a discussão nas ciências sociais sobre estrutura e agência.
Dada a complexidade e a extensão do texto, esta resenha está dividida em três seções: a primeira seção apresenta a proposta geral dos coordenadores; a segunda apresenta como o livro é articulado em seus 27 capítulos; e, por fim, a terceira seção expõe algumas ressonâncias da proposta teórica da dobradiça em relação a conceitos de inspiração latouriana, como nó e incerteza ontológica.
Em termos gerais, este livro é o resultado do trabalho de pesquisa anterior dos coordenadores.1 Desde 2017, eles têm estudado a diversidade religiosa no México com base em fontes quantitativas, como os censos do Instituto Nacional de Estatística, Geografia e Informática (inegi) e a Pesquisa Nacional de Crenças e Práticas Religiosas (Encreer, 2016), com base nos quais eles expõem a reconfiguração do campo religioso no México como um processo lento, mas sustentado (p. 21). Seu interesse é explicar as "diferentes formas de viver a religiosidade no México, em que a religiosidade é diversa e representa estruturas de diferenciação cultural" (p. 21). Um de seus objetivos é contribuir para uma cultura de aceitação, apreciação e respeito pela diversidade religiosa (p. 21).
Os coordenadores estão interessados em saber como as pessoas vivem sua religiosidade e o sagrado, a partir da vida cotidiana e da materialidade, como a constroem a partir de diferentes lógicas culturais e religiosas e as decisões que tomam a partir de sua história biográfica e como sujeitos situados em relação à classe social, ao gênero e à faixa etária, entre outros. Portanto, eles enfatizam a experiência do sujeito que está dentro da estrutura ou à margem da religião em termos da instituição, mas que não a determina. Aqui, a estrutura ou o sistema religioso não atua como um marco interpretativo para a ação dos atores religiosos, mas permite que os atores orientem e mostrem as múltiplas formas de construir o religioso a partir de sua experiência de vida (encruzilhadas, crises, adversidades, posições políticas, dissidências, críticas, entre outras) e como isso não é vivido no abstrato, mas a partir da materialidade (objetos, lugares, espaços, o corpo, orações, rezas, entre outros). Essa proposta não implica individualizar a análise e deixá-la como casos isolados, mas situar as histórias dos sujeitos em seu contexto social mais amplo (p. 719).
Os coordenadores discutem a forma como o fenômeno religioso é normalmente estudado, principalmente a partir de uma perspectiva institucional e censitária, e propõem uma metodologia fenomenológica baseada no conceito de religião cotidiana ou religião vivida, que leva em conta como os sujeitos constroem suas estruturas interpretativas para ser e estar no mundo com base em sua religiosidade. Essas estruturas não surgem do nada, mas de um contexto social que envolve a posição do indivíduo em termos familiares, de vizinhança, locais e nacionais.
Assim, destacam-se a reflexividade dos sujeitos, suas condições, possibilidades e dinamismo no campo religioso (mobilidades religiosas) que geram pertencimentos e identidades dinâmicos, posicionamentos políticos (feminismos ou práticas ambientais) e modos de subsistência econômica ao longo da vida.
Juárez, De la Torre e Gutiérrez reuniram um grupo de pesquisadores com experiência em várias religiões e religiosidades no México para empregar explicitamente a metodologia da religiosidade vivida. O foco desse grupo foi a implementação de um guia de entrevistas e o registro de materialidades (incluídos nos anexos do livro), que cada um complementou com outras ferramentas etnográficas. Embora tivessem uma diretriz muito marcada: a entrevista e a análise, bem como as discussões coletivas, cada autor colocou sua própria marca no trabalho; alguns tinham uma relação anterior de vários anos com os entrevistados, o que é evidente na profundidade de sua análise, como o trabalho de David de Ángel, Gabriela Gil, Antonio Higuera e Cristina Mazariegos. Assim, há descrições ricas que colocam o leitor no espaço da entrevista e descrições dos entrevistados que fazem o leitor se arrepiar com relação a suas experiências e sentimentos. Há também vozes que não estão tão convencidas da metodologia, mas que expõem suas possibilidades e limitações, e aquelas que até se questionam com relação às perguntas e observações que elaboram a partir de uma ontologia logocêntrica, epistemocêntrica ou ocidental, como é o caso de Cristina Gutiérrez e Gabriela Gil. Nos capítulos, podemos encontrar a experiência das autoras com relação ao sistema religioso no qual os atores estão inseridos ou são confundidos. É muito importante destacar que cada pesquisador expõe o que entende por materialidade, em alguns casos tematizando-a a partir de latitudes como as ontologias, as diversas formas de ser dos objetos e suas relações com os seres humanos (ver Renée de la Torre, Gabriela Gil, Olga Lidia Olivas, Cristina Gutiérrez, Arely Medina e Adrián Yllescas).
A estrutura do livro leva em consideração dois elementos-chave: as tendências estatísticas sobre a recomposição do campo religioso no México e como isso é vivenciado na vida cotidiana das pessoas (p. 22). Portanto, os casos apresentados foram escolhidos de forma a representar a diversidade religiosa atual e exemplificar as diferentes regiões e variáveis sociodemográficas - idade, etnia, gênero, nível socioeconômico e nível de educação (p. 22). Assim, o livro consiste em uma introdução geral, 27 capítulos e conclusões gerais. Desde a primeira página, é evidente o cuidado dos coordenadores com o rigor, o diálogo com os autores dos capítulos e, sobretudo, a voz dos interlocutores.
O livro está dividido em três seções, cujos objetivos são apresentar um relato da diversidade religiosa, mesmo dentro de religiões aparentemente bem delineadas e estruturadas, como o catolicismo e os evangélicos ou cristãos. A primeira seção, "Catholics" (Católicos) - com sete capítulos - foi coordenada e apresentada por Cristina Gutiérrez, que apresenta um relato da diversidade regional e étnica do catolicismo mexicano, uma religião atualmente professada por 77% da população, de acordo com o censo de 2020 (p. 64). A ênfase é colocada em mostrar a diferenciação interna do catolicismo, o que implica um modelo de regionalização baseado em sua configuração histórica e sua diversidade étnica dos grupos indígenas em termos de sincretismo (p. 64 e 65). Assim, podemos ler os testemunhos de uma católica crítica e liberacionista de Cuernavaca, Morelos (Cecilia Delgado-Molina), uma "garota Ibero" do Opus Dei da Cidade do México (Gabriela García), uma jovem católica de Guadalajara, Jalisco (Anel Victoria Salas), uma católica não praticante de Guadalajara, Jalisco (Renée de la Torre de la Torre), uma jovem católica de Guadalajara, Jalisco (Anel Victoria Salas) e uma católica não praticante de Guadalajara, Jalisco (Renée de la Torre), Jalisco (Renée de la Torre), um católico maia de Nunkiní, Campeche (David de Ángel García), um católico Rarámuri com seus costumes tradicionais do alto Tarahumara, em Chihuahua (Gabriela Gil), e a experiência carismática de uma mulher migrante Tseltal em San Cristóbal de las Casas, Chiapas (Gabriela Robledo).
A segunda seção corresponde a "Cristãos" - com nove capítulos -, coordenada e introduzida por Renée de la Torre, na qual é feito um relato da pluralidade de cristãos ou evangélicos que hoje constituem 11,2% da população mexicana (inegi 2020). Aqui se mostra como as particularidades dos casos geram culturas que exigem adaptações religiosas, cujas trajetórias de mobilidade religiosa múltipla envolvem constantes negociações, articulações e integrações (p. 248). Destaca-se também a abordagem da materialidade na vida cotidiana dos interlocutores, que passa dos objetos sagrados convencionais para o corpo, os espaços domésticos ou íntimos e a oração, entre outros. Ibarra), um homossexual de identidade evangélica dissidente da Cidade do México (Karina Bárcenas), uma mulher adventista em San Cristóbal de las Casas, Chiapas (Minerva Yoimy Castañeda), um imigrante Testemunha de Jeová em Chetumal, Quintana Roo (Antonio Higuera) e uma mulher mórmon de Aguascalientes (Genaro Zalpa).
A última seção intitula-se "Sin religión y religiones minoritarias" - com onze capítulos -, coordenada e introduzida por Nahayeilli Juárez, que engloba as experiências de pessoas não afiliadas e não afiliadas que explicitamente não pertencem a uma instituição religiosa ou eclesiástica (p. 453); em uma única seção, agrupa pessoas com seu próprio caminho espiritual (p. 454) e pessoas de religiões minoritárias no país. Assim, nessa seção podemos encontrar uma sacerdotisa tântrica da Cidade do México (María del Rosario Ramírez), uma autodenominada doutora espiritual em literatura com uma cosmovisão Wixárika de Guadalajara, Jalisco (Renée de la Torre), uma seguidora de Krishnamurti em Guadalajara, Jalisco (Cristina Gutiérrez), uma leiga zen em Mérida, Yucatán (Nahaye de la Torre), e uma leiga zen em Mérida, Yucatán (Nahaye de la Torre), que é seguidora de Krishnamurti em Guadalajara, Jalisco (Cristina Gutiérrez), Yucatán (Nahayeilli Juárez), uma praticante do caminho mexicano-lakota em Tijuana, Baja California (Olga Lidia Olivas), uma maçonaria homossexual em Aguascalientes (María Eugenia Patiño), uma muçulmana em Guadalajara, Jalisco (Arely Medina), uma judia em Guadalajara, Jalisco (Cristina Gutiérrez), uma espiritualista mariana trinitária em Veracruz (Gabriela Castillo), uma santeriana e uma treinador líder espiritual em Mérida, Yucatán (Nahayeilli Juárez), e um devoto de Santa Muerte na Cidade do México (Adrián Yllescas).
É importante enfatizar que o livro como um todo e a metodologia empregada levam a sério a palavra, o sentimento e a materialidade do outro (aliás, com belas e cuidadosamente escolhidas fotografias), em um único termo: sua experiência no mundo, sem limitá-la, classificá-la ou simplificá-la, mas sim levando em conta seu escopo, suas limitações, suas complexidades e, acima de tudo, a reflexividade de sujeitos com agência, capazes de decidir e interpretar - dentro de determinadas estruturas - seu ser e agir.
Dessa forma, encontramos agentes que comunicam sua necessidade de acreditar em algo, ou em alguém, de forma reflexiva e crítica, bem como a materialização de suas crenças, suas transições entre diferentes religiões, suas construções sobre o sagrado, sobre o corpo, sobre a família, sobre a pessoa, sobre o gênero, sobre a morte e o significado de sua existência por meio da sacralização ou contemplação de sua vida cotidiana e de sua relação com os outros e com o meio ambiente. Isso é vislumbrado de forma diversa e heterogênea, mas como uma constante em todos os capítulos.
Nas conclusões da obra, os coordenadores comparam e analisam os capítulos como um todo e compartilham sua contribuição teórico-metodológica: religiosidade de charneira, a partir de uma abordagem fenomenológica e materialista, que implica compreender o fenômeno religioso a partir da experiência concreta situada como um processo e não como classificações preconcebidas (p. 723), que não se deve apenas a uma lógica religiosa institucionalizada, mas à montagem que cada sujeito faz a partir de sua experiência de vida. A religiosidade de charneira é, então, uma perspectiva relacional, uma articulação de ancoragem e dinamismo, que são
pontos de articulação em que as expectativas individuais são negociadas com o sistema de normas e valores institucionais, a adequação das mudanças às tradições e a validade da fé em esferas seculares [...] oferece a possibilidade de imaginar conceitos não baseados em oposições, mas em interseções e complementaridades colocadas em movimento pela religiosidade cotidiana (p. 726).
Assim, a partir dessa abordagem, o fenômeno religioso pode ser entendido como um conceito polifônico composto de diferentes melodias, que vão desde a experiência reflexiva dos indivíduos até as normas institucionais.
Por fim, a contribuição teórico-fenomenológica dos coordenadores para o campo religioso ecoa com alguns elementos de perspectivas pragmáticas, como a Teoria do ator-rede (alcatrão). Os coordenadores passam da religiosidade vivida para a dobradiça, obscurecendo classificações e noções aparentemente dicotômicas ou binárias e colocando a materialidade no centro de sua análise. A utilidade da dobradiça está em "nomear processos intersticiais que articulam diferentes tradições religiosas e que ocorrem simultaneamente no mesmo evento" (p. 728); é, portanto, um ponto de contato "onde diferentes correntes, escalas ou conteúdos são articulados e as dobradiças funcionam como âncoras, onde religiosidades emergentes interagem com as tradicionais" (p. 728). Essa mobilidade de classificações e articulações está em sintonia com duas noções latourianas que apontam para a contribuição dos autores.
O primeiro é o princípio da incerteza ontológica que, no estudo das práticas, implica não estabelecer agência. a prioriO objetivo é ser guiado pelo princípio da incerteza, ou seja, ter uma falta de certeza dos objetivos nas interações sociais a fim de rastrear a ação de todos os atores envolvidos. Portanto, não é necessário estabelecer essências de sujeitos e objetos, nem criar fixidades ou metas em torno deles (Latour, 1994). Isso coincide com os coordenadores ao considerarem que a religiosidade de dobradiça implica adaptações dos sujeitos - por meio de suas experiências - à diversidade religiosa, de modo que a ênfase está na dinâmica da identificação e não em identidades puras ou fechadas que proporcionam a fixidez da religião em termos institucionais (p. 732). A segunda é uma noção de nó inspirada em Bruno Latour, entendida como uma articulação em que muitos conjuntos de agências convergem e agem simultaneamente (Apipilhuasco, 2021: 5). Embora o nó para Latour se afaste da ciência da computação que planeja o nó como uma articulação (cfr. Latour, 2008), é viável repensá-lo como tal, em termos metodológicos, conectando-se com o que ele considera: "a ação deve ser entendida como um nó, um nó e um conglomerado de muitos conjuntos surpreendentes de agências que devem ser lentamente desvendados" (Latour, 2008: 70), não tem estrutura definida, não tem caráter estratégico, não é fixa e tem tantas dimensões quanto conexões (Latour, 1996: 369 e 370). Caracterizar a ação, os eventos e até mesmo a materialidade como um nó é pensar nele metaforicamente como um lugar onde as conexões são feitas e por onde transitam diversos conjuntos de ações que não são fixas nem estabelecidas, elas estão em constante dinamismo, dependendo de todos os atores humanos e não humanos envolvidos nelas (Apipilhuasco, 2021). Isso se refere à dobradiça como o espaço de articulação onde diversas religiões interagem, "resultando em produtos sincréticos e híbridos derivados de bens e significados religiosos" (p. 728).
Dessa forma, a dobradiça, juntamente com a incerteza ontológica e o nó, podem ser noções que ajudam na investigação do campo religioso, como elementos que nos permitem gerar metodologias que partem de uma perspectiva emic -O principal objetivo do estudo é compreender a mobilidade, a diversidade e o dinamismo das identidades religiosas - enquadradas em um amplo contexto social.
Apipilhuasco, María Fernanda (2021). “Ñatitas. Producción, agencia y ritualidad de los cráneos en La Paz, Bolivia”. Tesis de doctorado. Zamora: El Colegio de Michoacán.
Latour, Bruno (1994). “On Technical Mediation: Philosophy, Sociology, Genealogy”, Common Knowledge, vol. 3, núm. 2, pp. 29–64. Recuperado de https://philpapers.org/rec/latotm
— (1996). “On Actor-Network Theory: A Few Clarifications”, Soziale Welt, vol. 47, núm. 4, pp. 369-381. Recuperado de http://www.jstor.org/stable/40878163
— (2008). Reensamblar lo social: una introducción a la Teoría del Actor-Red. Buenos Aires: Manantial.
María Fernanda Apipilhuasco Miranda Ele tem um Ph.D. em Antropologia Social pelo El Colegio de Michoacán e é formado em Sociologia pela Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Michoacán. unam. Ele conduziu projetos de pesquisa em Janitzio, Michoacán, La Paz, Bolívia e Pomuch, Campeche. Seus tópicos de pesquisa são sociologia e antropologia da religião, mito, antropologia da morte, indigeneidade, patrimonialização e ontologias dos Andes Centrais. Atualmente, ela está em seu segundo ano de pós-doutorado no Centro Peninsular de Humanidades e Ciências Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México.